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segunda-feira, 9 de abril de 2012

A Morte de Álvaro de Campos


Super-centenário era já, no entanto ao contrário dos outros que o consideravam um caso de notável longevidade e, até, um abençoado. O próprio homem considerava-se antes alguém esquecido pela própria Morte. Apesar da desilusão com a civilização mecânica, Campos manteve-se fiel à civilização digital pois, pela primeira vez, o Homem finalmente estava próximo de ele próprio se tornar uma máquina. E, talvez, sendo as máquinas perfeitas, o Homem se tornasse ele próprio perfeito.
No entanto mesmo os melhores computadores, feitos à imagem do Homem eram também eles de certa forma imprevisíveis e imperfeitos. E apesar de a rede global ter tornado as viagens substancialmente mais baratas, a solidão e nostalgia permaneciam, o tempo já passado ia acumulando e a infância já estava de tal modo distante que parecia antes ter sido vivida por uma outra pessoa, sendo o actual Álvaro um outro indivíduo que possui, por alguma arte, memórias de outra pessoa.
Mas quem será este “novo” Álvaro? De certo, alguém frustrado de estar frustrado… De estar frustrado, os anos são tantos que já perdeu memória de quem é realmente, ou talvez nunca o soube.
A filosofia que aprendera com o seu antigo mestre já pouco se aplicava neste novo Mundo. Uma foto ou um filme que antes eram expressões das sensações puras, a captação pura do real eram agora facilmente manipuláveis.
Tal como um qualquer velho, Campos tinha adoptado uma rotina que mantinha religiosamente.
Efectuava um percurso pela cidade de Lisboa, sempre a pé, todos os dias. O propósito desta caminhada era mais para o próprio confirmar que ainda estava vivo e que as suas pernas super-centenárias ainda funcionavam do que pelo exercício físico. No entanto, com o passar dos anos, este percurso foi alterando com a mudança da morfologia da própria Lisboa. Quando a idade é tão avançada torna-se claro que a cidade é também um ser vivo em constante mudança. Essa mudança tornou-se tão acentuada que a rota diária tinha de ser alterada de tempos a tempos. As estradas deixaram de estar povoadas de animais de transporte e passaram a estar ocupadas de animais que dificultam o transporte.
E enquanto as barulhentas máquinas deusas da locomoção terrestre se poderiam afigurar ao sonho de Campos, a sujidade destas e as bestas que as conduziam transformavam-nas em algo detestável.
À falta de pragas devastadoras e guerras perto de casa, a Morte parecia também difícil de encontrar casualmente e suicídio consciente parecia fora de questão, as memórias da infância mantinham-no são. Mas esta ignóbil vida estava deveras a chegar ao fim.
Era fim de tarde já em Lisboa quando Álvaro decidiu sair das ruas, farto de tão asnática população. É inacreditável que apesar de tantas décadas a cultura Chico-espertista portuguesa continua em demasiada boa forma. Não se sabe se foi esta cultura que pôs o povo português no topo da cadeia alimentar no tempo dos Descobrimentos, mas é certo que tentar ultrapassar em filas usando um vastíssimo arsenal de manobras puníveis por lei/ perigosas é, basicamente, cultural. Cultural é também a veneração aos programas em horário nobre. Apesar da ascensão da inexorável Internet, aqueles das classes mais baixas não dispensam ainda a caixa da cultura da treta. É interessante observar, e Campos como ancião que é o verifica ainda com mais clareza, como a televisão passou de besta a bestial. O que inicialmente era o equivalente socialmente aceitável a fumar marijuana, devido aos efeitos nefastos que provocaria no cérebro tornou-se na maior fonte de cultura da população. Campos não dispensava ver toda a variedade de programas existentes. Um dos elementos mais caracterizadores de um povo são os programas que veem. E o amor do português ao espectáculo e ao exagerado está bem presente. O português é o tipo de indivíduo que consegue fazer de um incêndio florestal espectáculo cultural. Os programas mais vistos refletiam toda esta veneração ao sensacionalismo, que apesar da semelhante fonética, é bastante diferente do sensacionismo que Campos tanto gostava nos seus poemas. No entanto, apesar de tudo deve-se dar crédito ao povo português por… o pensamento do velho heterónimo interrompeu-se por aqui quando uma parte do jantar se decidiu vingar. Tratava-se de uma espinha do bacalhau cozido preso na garganta de Campos. Parecia que o próprio peixe já não se sentia digno de ser engolido por alguém de nacionalidade tão reles.
Quando recuperou os sentidos, apenas ouvia o beep pausado da máquina de suporte de vida. Por algum tipo de consequência que só alguém entendido em saúde saberia explicar, a vingativa espinha tinha conseguido pôr o velho poeta em estado crítico. E foi, nesta deprimente condição, que Campos percebeu que finalmente teria atingido o seu sonho: ser um com uma máquina. Infelizmente para ele, este, outrora grande sonho era agora um pesadelo: as máquinas apesar de parecerem grandiosas, são na verdade frágeis, dependentes do Homem e monótonas nas suas acções. As máquinas afiguravam-se mais a cães do que a deuses, e mesmo o melhor amigo do Homem consegue, por vezes, surpreender e adoptar comportamentos inesperados, a máquina nunca foge ao que o seu programador idealizou.
Esta última desilusão acabou com o último sonho de Campos. Porque os sonhos, para se chamarem sonhos, têm um carácter de certa intangibilidade que os tornam algo brilhante, fantástico, maravilhoso e o último objetivo na vida. No entanto quando, por obra da vontade humana, este objetivo perde a sua intangibilidade depressa estes sonhos se mostram como algo bastante terreno e até aborrecido. É nesta fase que se instala a desilusão da qual Álvaro de Campos sofria.
Por, também, consequências médicas, cuja natureza é de difícil explicação, aliás a explicação é até bastante simples mas algo embaraçosa e que deixou os médicos responsáveis prontos a enterrarem-se até ao outro lado do Planeta, pode-se dizer que a partir deste acontecimento o maior uso das licenças médicas de todos os responsáveis seria combustível, se o embaraço e a vergonha fossem comestíveis estava resolvida a crise de falta de alimento em África. Acontece que o pobre desiludido homem sofreu danos cerebrais, todas as memórias de longo prazo, leia-se as mais antigas, tinham sido apagadas. Sem o reconforto das memórias de infância, a última solução seria o suicídio. Ato este que tantos anos de evolução de política social teriam tornado dignificado sob a forma de eutanásia. Enfim, algo de útil que a modernidade trouxe, para além do controlo remoto e do bacalhau embalado em vácuo.
No dia seguinte todos os media noticiavam o mesmo: “morreu um dos maiores poetas de sempre e o Homem mais velho de Portugal”, em seguida mostravam slideshows com antigas fotos de Álvaro enquanto uma voz off lia o seu artigo da Wikipedia. Imediatamente, adivinhando que esta morte estava para breve um escritor de pouca imaginação finalmente publicava uma biografia completa do falecido, enquanto outro publicava um “Álvaro de Campos como nunca antes visto” repleto de escândalos sexuais e outras coisas que agradariam ao público. A velha casa no centro de Lisboa onde vivia foi imediatamente comprada e transformada em museu. Tudo valia para monetizar a custo do defunto, era, afinal, tudo em prol da preservação da Cultura. No entanto, para a perspetiva do povo algo foi bom: finalmente toda a populaça que via televisão depois do trabalho e cuja cultura se resumia a jornais desportivos e o que é que estivesse para ler na sala de espera do dentista sabia quem era Álvaro de Campos.
Era enfim, uma completa celebridade.


André Lopes