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terça-feira, 17 de novembro de 2015

Fernando Pessoa ortónimo

Há poesia em tudo – na terra e no mar, nos lagos e nas margens dos rios. Há-a também na cidade – não o neguemos – facto evidente para mim enquanto aqui estou sentado: há poesia nesta mesa, neste papel, neste tinteiro; há poesia na trepidação dos carros nas ruas; em cada movimento ínfimo, vulgar, ridículo, de um operário que, do outro lado da rua, pinta a tabuleta de um talho. (…) Existe para mim – existia – um tesouro de significado numa coisa tão ridícula como uma chave, um prego na parede, os bigodes de um gato. (…) é que a poesia é espanto, admiração, como de um ser tombado dos céus em plena consciência da queda, atónito com as coisas.





Fernando Pessoa conta e chora a insatisfação da alma humana. A sua precaridade, a sua limitação, a dor de pensar, a fome de se ultrapassar, a tristeza, a dor da alma humana que se sente incapaz de construir e que, comparando as possibilidades miseráveis com a ambição desmedida, desiste, adormece “num mar de sargaço” e dissipa a vida no tédio.
Os remédios para esse mal são o sonho, a evasão pela viagem, o refúgio na infância, a crença num mundo ideal e oculto, situado no passado, a aventura do Sebastianismo messiânico, o estoicismo de Ricardo Reis, etc.. Todos estes remédios são tentativas frustradas porque o mal é a própria natureza humana e o tempo a sua condição fatal. É uma poesia cheia de desesperos e de entusiasmos febris, de náusea, tédios e angústias iluminados por uma inteligência lúcida – febre de absoluto e insatisfação do relativo.
A poesia está não na dor experimentada ou sentida mas no fingimento dela, apesar do poeta partir da dor real “a dor que deveras sente”. Não há arte sem imaginação, sem que o real seja imaginado de maneira a exprimir-se artisticamente e ser concretizado em arte. Esta concretização opera na memória a dor inicial fazendo parecer a dor imaginada mais autêntica do que a dor real. Podemos chegar à conclusão de que há 4 dores: a real (inicial), a que o poeta imagina (finge), a dor real do leitor e a dor lida, ou seja, intelectualizada, que provém da interpretação do leitor.

A vida é sentida como uma cadeia de instantes que uns aos outros se vão sucedendo, sem qualquer relação entre eles, provocando no poeta o sentimento da fragmentação e da falta de identidade.

O presente é o único tempo por ele experimentado (em cada momento se é diferente do que se foi)
O passado não existe numa relação de continuidade com o presente.
Tem uma visão negativa e pessimista da existência; o futuro aumentará a sua angústia porque é o resultado de sucessivos presentes carregados de negatividade.


Na poesia de Fernando Pessoa como ortónimo coexistem duas vertentes: a tradicional e a modernista.
Alguns dos seus poemas seguem na continuidade do lirismo português,outras iniciam o processo de ruptura, que se concretiza nos heterónimos ou nas experiências modernistas.
A poesia, a cujo conjunto Pessoa queria dar o título Cancioneiro, é marcada pelo conflito entre o pensar e o sentir, ou entre a ambição da felicidade pura e a frustração que a consciência de si implica (como por exemplo no poema Ela canta, pobre ceifeira nos versos “O que em mim sente „stá pensando./Derrama no meu coração”).

Fernando Pessoa procura através da fragmentação do “eu” a totalidade que lhe permita conciliar o pensar e o sentir. A fragmentação está evidente por exemplo, em Meu coração é um pórtico partido, ou nos poemas interseccionistas "Hora absurda", "Chuva oblíqua" e "Não sei quantas almas tenho" (verso “Continuamente me estranho”). O interseccionismo entre o material e o sonho, a realidade e a idealidade, surge como tentativa para encontrar a unidade entre a experiência sensível e a inteligência.
A poesia do ortónimo revela a despersonalização do poeta fingidor que fala e que se identifica com a própria criação poética, como impõe a modernidade.


Binómios Temáticos

Sinceridade/fingimento
- Intelectualização do sentir = fingimento poético, a única forma de criação artística (autopsicografia, isto);
- Despersonalização do poeta fingidor que fala e que se identifica com a própria criação poética;
- Uso da ironia para pôr tudo em causa, inclusivé a própria sinceridade;
- Crítica de sinceridade ou teoria do fingimento está bem patente na união de contrários;

Consciência/inconsciência
- Aumento da autoconsciência humana;
- Tédio, náusea, desencontro com os outros (“Tudo o que faço ou medito”);
- Tentativa de resposta a várias inquietações que perturbam o poeta.
Sentir/pensar
- Concilia o pensar e o sentir;
- Obsessão da análise, extrema lucidez, a dor de pensar (ceifeira);
- Solidão interior, angústia existencial, melancolia;
- Inquietação perante o enigma indecifrável do mundo;
- Nega o que as suas percepções lhe transmitem - recusa o mundo sensível, privilegiando o mundo inteligível;
- Fragmentação do eu, perda de identidade – sou muitos e não sou ninguém- interseccionismo entre o material e o sonho; a realidade e a idealidade; realidades psíquicas e físicas; interiores e exteriores; sonhos e paisagens reais; espiritual e material; tempos e espaços; horizontalidade e verticalidade.

O tempo e a degradação: o regresso à infância
- Desencanto e angústia acompanham o sentido da brevidade da vida e da passagem dos dias;
- Busca múltiplas emoções e abraça sonhos impossíveis, mas acaba “sem alegria nem aspirações”, inquieto, só e ansioso;
- O passado pesa “como a realidade de nada” e o futuro “como a possibilidade de tudo”. O tempo é para ele um factor de desagregação na medida em que tudo é breve e efémero;
- Procura superar a angústia existencial através da evocação da infância e de saudade desse tempo feliz - nostalgia do bem perdido, do mundo fantástico da infância.


O Fingimento poético é inerente a toda a composição poética do Ortónimo e surge como uma nova concepção de arte.
A poesia de Pessoa é fruto de uma despersonalização. O Ortónimo conclui que o poeta é um fingidor: “ finge tão completamente / que chega a pensar se é dor/ a dor que deveras sente/”, bem como um racionalizador de sentimentos.

O pensamento e a sensibilidade são conceitos fundamentais na ortonímia; o poeta brinca intelectualmente com as emoções, levando-as ao nível da arte poética.
O poema resulta, então, de algo intelectualizado e pensado .

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