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quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Uma análise do poema "Aniversário"


Em 45 versos, distribuídos por estrofes irregulares […] e em verso livre, como é habitual em
Campos, tomando como espécie de leitmotiv obsessivo o “No tempo em que festejavam o dia dos meus
anos”, que funciona como espécie de refrão, evoca-se, de maneira nostálgica, um passado de
infância, em que “fazer anos era uma tradição de há séculos / E a alegria de todos, e a minha, estava certa
como uma religião qualquer.”
Era o momento em que se era “inteligente por entre a família”, porque no Eu/menino havia “a
grande saúde de não perceber coisa nenhuma” – ou seja, era o tempo em que o gozo era gozo sem
necessidade de justificação, o tempo de se ter a alegre inconsciência da ceifeira de que falava Pessoa
[…]. Porque assim era, esse tempo-inocente, era igualmente tempo de “não ter esperanças”, as
esperanças que outros tinham em seu lugar.
Após essa primeira evocação do tempo da saúde, em que “se era feliz e ninguém estava morto”,
um “refluxo” a marcar a disforia do tempo de depois e de hoje (3.ª estrofe), transmitido através de
metáforas, comparações e imagens poderosas: “O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do
fim da casa, / Pondo grelado nas paredes… […] / É terem vendido a casa, / É terem morrido todos, / É estar
eu sobrevivente a mim mesmo como um fósforo frio”.
Nada sobrou desse tempo feliz – a não ser o “desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez”,
mais adiante definido como fome devoradora: “Comer o passado como pão de fome, sem tempo de
manteiga nos dentes!”
Na 5.ª estrofe, um regresso maravilhado – na imaginação, claro – a esse passado em que a
mesa era posta com mais lugares, com loiças, copos diferentes e talheres mais bonitos, com ‘‘ as
tias velhas’’ (também evocadas na ‘‘Ode Marítima’’), os primos – e o acentuar, entre o encantamento
e a nostalgia: “e tudo era por minha causa” – é o tempo em que, todos, mais ou menos, somos
a pessoa mais importante do mundo…
E, depois, a penúltima estrofe, como conclusão, a marcar a amargura – “Para, meu coração, / Não
penses! Deixa o pensar na cabeça!” – no fundo é esse o drama, sentido por Campos como por Pessoa,
e “ultrapassado” (?) pela nitidez do olhar de Caeiro e pela reflexão melancólica de Reis, que visa
ser-lhe “indiferente” – o drama da dor de pensar, de ser consciente, lúcido, em vez de sentir, só.
O coração não é para pensar, é para sentir – o pensar é para a cabeça – diz Campos.
O final da estrofe é magnífico (ninguém como Campos o tinha dito –, que eu saiba ninguém
o disse melhor depois):
“Hoje, já não faço anos. / Duro. / Somam-se-me dias. / Serei velho quando for. / Mais nada.”
E a exclamação de raiva incontida e de impotência:
“Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!”


PAIS, Amélia Pinto, 2002. Para compreender Fernando Pessoa. 

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