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terça-feira, 28 de março de 2017

Canto VIII- O poder corruptor do vil metal


96
Nas naus estar se deixa, vagaroso,
Até ver o que o tempo lhe descobre;
Que não se fia já do cobiçoso
Regedor, corrompido e pouco nobre.
Veja agora o juízo curioso
Quanto no rico, assi como no pobre,
Pode o vil interesse e sede imiga
Do dinheiro, que a tudo nos obriga.
97
A Polidoro mata o Rei Treício,
Só por ficar senhor do grão tesouro;
Entra, pelo fortíssimo edifício,
Com a filha de Acriso a chuva d' ouro;
Pode tanto em Tarpeia avaro vício
Que, a troco do metal luzente e louro,
Entrega aos inimigos a alta torre,
Do qual quási afogada em pago morre.

98
Este rende munidas fortalezas;
Faz trédoros e falsos os amigos;
Este a mais nobres faz fazer vilezas,
E entrega Capitães aos inimigos;
Este corrompe virginais purezas,
Sem temer de honra ou fama alguns perigos;
Este deprava às vezes as ciências,
Os juízos cegando e as consciências.
99
Este interpreta mais que sutilmente
Os textos; este faz e desfaz leis;
Este causa os perjúrios entre a gente
E mil vezes tiranos torna os Reis.
Até os que só a Deus omnipotente
Se dedicam, mil vezes ouvireis
Que corrompe este encantador, e ilude;
Mas não sem cor, contudo, de virtude!



Os Lusíadas: VIII, 96-99
         Vasco da Gama permanece nas naus e decide não desembarcar, visto que já não confia no ambicioso Catual, pois já o traíra, era muito ambicioso («cobiçoso»), corrupto («corrompido») e «pouco nobre». Por outro lado, Gama espera vir a descobrir a verdade com o tempo, daí também a sua decisão.
         Ora, esta referência ao sucedido a Vasco da Gama é o exemplo que serve de ponto de partida para a reflexão do poeta, que adverte, a partir do verso 5 da estância 96, para o efeito corruptor do dinheiro, que tanto sujeita os ricos como os pobres.

         Na estância 97, o poeta apresenta três casos através dos quais pretende provar a sua tese enunciada na estância anterior, isto é, que exemplificam o poder negativo dos bens materiais – dinheiro e ouro ‑, que levam à adoção de atitudes inesperadas.
         O primeiro exemplo refere-se ao rei da Trácia, que assassinou Polidoro, filho de Príamo, rei de Troia, com o único fito de lhe roubar o ouro. De facto, para o salvar, quando a cidade estava prestes a cair em poder dos Gregos, o rei enviou-o com ouro ao rei da Trácia que, todavia, se apoderou do ouro e o assassinou.

         O segundo caso refere-se a Dánae, filha de Acrísio, rei de Argos (Grécia), que foi encerrada numa torre para que não procriasse e, deste modo, fosse anulada uma profecia de um oráculo que anunciou a morte do soberano às mãos de um neto. Porém, Júpiter metamorfoseou-se em chuva de ouro, introduziu-se na torre e engravidou-a. Desse ato nasceu Perseu, que, concretizando a profecia, assassinou o avô.

         O último exemplo alude a Tarpeia, uma jovem romana que, na esperança de obter anéis de ouro dos Sabinos que sitiavam Roma, lhes abriu as portas da cidade. No entanto, os inimigos não a pouparam, esmagando-a sob as jóias e os escudos, tendo assim ficado soterrada.

         Nas estâncias 98 e 99, o poeta prossegue a enumeração dos efeitos negativos do dinheiro:
a. corrompe o pobre e o rico (estância 96);
b. leva ao assassínio (exemplo do rei da Trácia);
c. conduz à traição (est. 98, v. 1): os soldados rendem-se quando as suas fortalezas ainda se encontram abastecidas;
d. conduz à traição e à falsidade entre os amigos;
e. transforma o mais nobre em vilão (est. 98, vv. 3 a 6): a ambição material pode levar nobres, capitães ou virgens a renderem-se ao seu poder, mesmo tendo consciência de que a sua honra ficará manchada;
f. corrompe as ciências, os juízes e as consciências, levando-as a agir contra os seus princípios morais e culturais (est. 98, vv. 7-8);
g. distorce / perverte a interpretação dos textos (est. 99, vv. 1-2);
h. manipula as leis e a justiça, que se aplicam arbitrariamente (est. 99, v. 2);
i. fomenta o perjúrio (est. 99, v. 3);
j. fomenta a tirania nos reis (est. 99, v. 4);
k. corrompe os membros do clero, ainda que sob uma capa de virtude.

         Em síntese, os vícios provocados pela ambição são os seguintes:
i. a traição (“Faz tredores e falsos os amigos”);
ii. a corrupção (“Este corrompe virginais purezas”);
iii. a arbitrariedade (“Este interpreta mais que subtilmente / Os textos…”);
iv. a mentira / o perjúrio (“Este causa os perjúrios entre a gente”);
v. a tirania (“E mil vezes [hipérbole] tiranos torna os Reis”).














Episódio da Ilha dos Amores


Caráter simbólico do episódio “Ilha dos Amores”:

­ o mar é o caminho físico para a espiritualidade;
­ com Vasco da Gama temos o reconhecimento do herói e a Ilha dos Amores é esse reconhecimento;
­ na  Ilha  dos  Amores  dá­se  o  casamento  cósmico  entre  os marinheiros  e  as  ninfas  – é  a recompensa  e  a dignificação/mitificação do herói;
­ para  os  marinheiros  fazerem  amor  com  a  ninfas,  são  elevados  ao  plano  do  divino  e  as  ninfas  têm oportunidade de saborear o amor humano;
­ Tétis  revela  a  Vasco  da  Gama  a  Máquina  do  Mundo,  o  que  permite  a  mitificação  do  herói,  o  amor  e  o conhecimento. São estes últimos que permitem a elevação do ser como pessoa;
­ a Ilha existe porque os portugueses foram capazes de ultrapassar os seus medos e atingir o conhecimento ao passarem pelo Cabo das Tormentas;
­ revelação de que o único caminho para o futuro é o amor e o conhecimento (cf. Quinto Império)


Mitificação do herói:

­ os portugueses conseguiram conquistar o mar e vencer as forças divinas;
­ a vontade de “ir mais alto” e “mais longe”, a ousadia, a coragem, o sacrifício e o estudo permitiram ao povo português a superação de si próprio e “mais do que prometia a força humana” atingir o seu objetivo;
­ a  Ilha  dos  Amores  surge  como  a  recompensa  pela  superação  de  todos  os  obstáculos  e  o  alcance  do “horizonte”, existindo, desta forma, a divinização dos portugueses;
­ a viagem traduz­se na procura da verdade, na passagem do desconhecido para o conhecido, das trevas para a  luz,  a  capacidade  de  ultrapassar  o  medo  e  atingir  a  verdade,  sendo  exemplo  disso  o  episódio  do Adamastor;
­ a Máquina do Mundo surge como uma nova época do conhecimento, o alargamento de horizontes;
­ a suprema harmonia dá-se através da união dos homens com os deuses;