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domingo, 26 de janeiro de 2014

Texto expositivo-argumentativo

Um texto expositivo-argumentativo deve combinar dois princípios de estruturação:

I – apresentar uma tese, desenvolver justificativas para comprovar essa tese e uma conclusão que dê um
fecho à discussão elaborada no texto, compondo o processo argumentativo.

TESE – É a ideia que  vais defender no teu texto. Ela deve estar relacionada ao tema e deve estar apoiada em argumentos ao longo da redação.

ARGUMENTO – É a justificativa utilizada por ti para convencer o leitor a concordar com a tese defendida. Cada argumento deve responder à pergunta “por quê?” em relação à tese defendida.

II – utilizar estratégias argumentativas para expor o problema discutido no texto e detalhar os argumentos utilizados.

ESTRATÉGIAS ARGUMENTATIVAS – São recursos utilizados para desenvolver os argumentos, de modo a convencer o leitor:
• exemplos;
• dados estatísticos;
• pesquisas;
• factos comprováveis;
• citações ou depoimentos de pessoas especializadas no assunto;
• alusões históricas; e
• comparações entre factos, situações, épocas ou lugares distintos.

EXEMPLO

O Papel da Televisão na Vida dos Jovens


     A televisão tem uma grande influência na formação pessoal e social das crianças e dos jovens. Funciona como um estímulo que condiciona os comportamentos, positiva ou negativamente.
   A televisão difunde programas educativos edificantes, tais como o ZigZag, os documentários sobre Historia, Ciências, informação sobre a atualidade, divulgação de novos produtos…Todavia, a televisão exerce também uma influência negativa, ao exibir modelos, cujas características são inatingíveis pelas crianças e jovens em geral. As suas qualidades físicas são amplificadas, os defeitos esbatidos,criando-se a imagem do herói / heroína perfeitos. Esta construção produz sentimentos de insatisfação do eu consigo mesmo e de menosprezo pelo outro.
    A violência é outro aspeto negativo da televisão, em geral. As crianças e os jovens tendem a imitar os comportamentos violentos dos heróis, o que pode colocar em risco a vida dos mesmos. O mesmo acontece com o visionamento de cenas de sexo. As crianças formam uma imagem distorcida da sua sexualidade,potenciando a prática precoce de sexo e suscitando distúrbios afetivos.
     Em jeito de conclusão, é legítimo que se imponha às estações de televisão uma restrição de exibição de material violento ou desajustado à faixa etária nas suas grelhas de programação, dado que a exposição a este tipo de conteúdos é extremamente prejudicial no desenvolvimento das crianças e dos jovens, pois, tal como diz o povo, “violência só gera violência”.




Funções Sintáticas e Orações

Identifica a função sintática da palavra ou expressão a negrito.

1. Ele ficou em casa. (predicativo do sujeito)
2. Nós dissemos que iríamos ser pontuais. (complemento direto)
3. Os alunos que tiverem boa nota no teste vão receber um prémio (modificador restritivo do nome)
4. Elas concluíram o trabalho rapidamente. (modificador)
5. O vestido foi comprado na semana passada. (predicado)
6. O diretor nomeou-o chefe-adjunto. (predicativo do complemento direto)
7. A oferta de livros foi muito louvável. (complemento do nome)
8. Os meus amigos moram aqui. (complemento oblíquo)
9. Pessoa, esse génio da literatura, era português. (modificador apositivo)



1. Na frase “Gosto dela, mas às vezes farto-me!” oração sublinhada é
a.    subordinada adjetiva restritiva.
b.    coordenada completiva.
c.    subordinada adverbial causal.
d.    coordenada adversativa.

2.    Na frase “Mal acordo, espreguiço-me!”, a oração sublinhada é
a.    subordinada adverbial temporal.
b.    subordinada adverbial causal.
c.    subordinada adverbial comparativa.
d.    subordinada adverbial consecutiva.

3.    A oração sublinhada em “Vou ter a tua casa, a não ser que acabe tarde.” é
a.    subordinada adverbial consecutiva.
b.    subordinada adverbial concessiva.
c.    subordinada adverbial condicional.
d.    subordinada adverbial causal.

4. A oração sublinhada na frase “O João, quando o telefone tocou, deu um salto.” é
a.    subordinante.
b.    subordinada adjetiva explicativa.
c.    subordinada adjetiva completiva.
d.    subordinada copulativa.

5. Em que alínea a conjunção “que” introduz uma oração subordinada causal?
a.    Ela é tão bonita que todos olham para ela.
b.    Mesmo que chegues tarde, vou ficar à tua espera.
c.    Ela disse que tu estavas mal vestida!
d.    Vem comigo, que preciso de ajuda!

6. De entre as frases que se seguem, em que alínea a conjunção “como” introduz uma oração causal?
a.    Ela fala como se mandasse!
b.    Como chegaste tarde, não esperamos para jantar.
c.    O Pedro é alto como uma torre!
d.    A minha mãe cozinha como se fosse um chef de culinária.

7. De entre as frases que se seguem, em que alínea o “como” introduz uma oração subordinada adverbial comparativa?
a.    Como está a chover, vou levar gabardina.
b.    Como o Manuel teve um acidente, vou visitá-lo ao hospital.
c.    Ela era esguia e elegante como (é) uma serpente.
d.    Como me pediste ajuda, aqui tens os meus apontamentos da aula.

8. Das frases que se seguem, em que alínea a conjunção “que” não introduz uma oração subordinada substantiva completiva?
a.    A Marta disse que ia ter ao restaurante.
b.    É lamentável que tenhas dito tanto disparate!
c.    Choveu tanto que me molhei toda!
d.    Penso que tens razão.

9. Em que alínea encontras uma oração subordinada substantiva completiva?
a.    Ela é bonita, mas às vezes é tão antipática!...
b.    Se ganhasse o totoloto, ia de férias!
c.    Apesar de a professora explicar bem a matéria, fiquei com algumas dúvidas.
d.    Perguntei-lhe se queria ir connosco ao cinema.

 10. Classifica a oração sublinhada na frase “Os alunos que terminaram a prova esperaram pelo final do tempo estabelecido.”
a.    Oração subordinada adjetiva relativa restritiva.
b.    Oração subordinada adjetiva relativa explicativa.
c.    Oração subordinada substantiva completiva.
d.    Oração subordinada substantiva relativa sem antecedente.

11. Classifica a oração sublinhada na frase “O homem, que olhava para ela insistentemente, tinha mau aspeto.”
a.    Oração subordinada adverbial causal.
b.    Oração subordinada substantiva relativa sem antecedente.
c.    Oração subordinada adjetiva relativa explicativa.
d.    Oração coordenada conclusiva.



Os Cantos d' Os Lusíadas


Os Lusíadas (cliquem aqui e tenham acesso à obra) Lusíadas anotados

CANTO I 

1 - 3 (Proposição): Camões propõe-se a cantar os feitos dos Portugueses.
4 -5 (Invocação): O poeta invoca as Tágides (ninfas do Tejo).
6 - 18 (Dedicatória): O poema é dedicado a D. Sebastião.
19 (Narração): A Armada no Oceano Índico.
20 - 41: Os Deuses discutem no Olimpo. Júpiter e Vénus apoiam os Portugueses, e Baco opõe-se. Marte apoia Vénus.
42 - 99: A Armada em Moçambique. Vasco da Gama recebe o regedor e este último, incitado por Baco, ataca os Portugueses, mas é vencido. Mostra-se arrependido e oferece um falso piloto ao Gama.
100 - 102: O falso piloto dirige as naus para Quiloa, mas Vénus afasta os Portugueses do perigo de uma emboscada.
103 - 104: Chegada a Mombaça.
105 - 106: Considerações sobre a insegurança e as falsidades da vida. 

CANTO II 

1 - 28: O rei de Mombaça, mandado por Baco, tenta destruir a Armada Portuguesa atraindo-a ao porto. Vénus pede ajuda às Nereidas e estas afastam as naus. O falso piloto e os mouros julgam ter sido descobertos e fogem.
29 - 32: Vasco da Gama apercebe-se da cilada e pede a deus que o ajude a chegar à Índia.
33 - 63: Vénus pede a Júpiter que ajude os Portugueses. Júpiter concorda e profetiza-lhes sucesso. Mercúrio aparece em sonhos ao Gama e diz-lhe para seguir viagem.
64 - 71: Partida de Mombaça. Os Portugueses capturam um navio e os mouros levam-nos a Melinde.
72 - 91: Recepção festiva em Melinde.
92 - 113: O rei de Melinde visita a Armada e pede ao Gama que lhe conte a história de Portugal.

CANTO III 

1 - 2: Invocação de Camões a Calíope.
3 - 5: O Gama resume ao rei de Melinde o que lhe vai contar: terras, gentes e feitos de armas.
6 - 21: Situação geográfica da Europa e de Portugal
22 - 98: Viriato, Conde D. Henrique, reis de Portugal (de D. Afonso Henriques a D. Dinis), Egas Moniz, guerras da Reconquista, Batalha de Ourique.
99 - 135: D. Afonso VI, Batalha do Salado, episódios Líricos de Inês e da formosíssima Maria.
136 - 143: Reinados de D. Pedro e D. Fernando.

CANTO IV 

1 - 50: Mestre de Avis como rei de Portugal, discurso de Nun'Álvares, Batalha de Aljubarrota, conquista de Ceuta.
51 - 65: Reinados de D. Duarte, D. Afonso V e D. João II.
66 - 93: Reinado de D. Manuel. Sonho do rei em que aparecem os rios Ganges e Indo a profetizar o sucesso dos Portugueses na Índia. A Armada parte de Belém rumo ao Oriente.
94 - 104: O Velho do Restelo.

CANTO V

1 - 36: O Gama conta ao rei de Melinde a viagem até ao cabo das tormentas. Partida para o Equador. Fogo de Santelmo. A tromba Marítima. Fernão Veloso na Baía de Santa Helena.
37 - 60: O gigante Adamastor.
61 - 91: O Gama acaba o relato da viagem até Melinde. O escorbuto. Elogio à coragem dos Portugueses.
92 - 100: Desânimo do poeta face ao desprezo dos Portugueses pelas Letras, e em especial pela poesia. 

CANTO VI 

1 - 6: O povo de Melinde festeja os Portugueses. Partida das naus para os mares da Índia.
7 - 37: Baco fala com Neptuno. Concílio dos Deuses Marinhos. Discurso de Baco. Éolo é incitado a soltar os ventos para impedir a viagem dos Portugueses.
38 - 69: A bordo, os Portugueses contam histórias para passar o tempo. Fernão Veloso conta o episódio dos Doze de Inglaterra.
70 - 84: A tempestade.
85 - 91: Vénus e as ninfas abrandam os ventos.
92 - 94: As naus chegam a Calecute. O Gama agradece de novo a Deus.
95 - 99: Camões medita sobre o valor da glória. 

CANTO VII 

1 - 14: A Armada está na barra de Calecute. Camões elogia o espírito aventureiro dos Portugueses, comparando-os com outros povos que nada fazem. 
15 - 22: Entrada em Calecute. Descrição da Índia.
23 - 27: Contacto com o povo desconhecido.
28 - 41: Monçaide descreve o Malabar.
42 - 56: O Gama desembarca e o Catual leva os Portugueses até junto do Samorim.
57 - 66: O Gama visita o Samorim. Acolhimento dos Portugueses.
66 - 77: Paulo da Gama recebe o catual a bordo da Armada.
78 - 87: Camões faz nova invocação às Ninfas do Tejo e do Mondego, e queixa-se da sua infelicidade.

CANTO VIII 

1 - 43: Paulo da Gama descreve ao Catual as figuras das bandeiras das naus.
44 - 56: O Catual regressa a terra. Baco intervém de novo, pondo os indianos contra os Portugueses.
57 - 78: O Gama pede para ser recebido pelo Samorim. Este acredita no discurso do capitão e deixa que regresse à sua nau.
79 - 95: O Catual tenta deter Vasco da Gama em terra, mas como tem medo do Samorim, liberta-o a troco de mercadorias. O capitão regressa à nau e ficam dois feitores em terra.
96 - 99: Reflexões do poeta sobre o poder do ouro. 

CANTO IX 

1 - 17: Em Calecute espera-se uma armada Muçulmana para destruir a Portuguesa. Monçaide avisa o Gama, que levanta âncora, aprisionando os mercadores indianos como castigo.Os mercadores são trocados pelos feitores, e a Armada volta a Portugal.
18 - 50: Vénus decide recompensar os Portugueses.
51 - 92: Ilha dos Amores. Descrição e acolhimento das Ninfas aos Portugueses. Tétis recebe o Gama no palácio.
93 - 95: Exortação de Camões aos que sonham com a imortalidade. 


CANTO X 

1 - 143: Ilha dos Amores. Profecia dos feitos dos Portugueses no Oriente feita por uma Ninfa. Invocação a Calíope. A Ninfa continua as profecias. Tétis indica ao Gama os locais onde os Portugueses serão célebres. Os marinheiros despedem-se e partem.
144: Chegada a Portugal.
145 - 156: O poeta lamenta-se e promete a D. Sebastião cantar as futuras glórias e conclui assim a sua dedicatória, encerrando com ela a obra.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Os Lusíadas

A origem da palavra Lusíadas – Conta a lenda que Luso, filho de Baco, deus do vinho, fundou,
no extremo ocidental da Península Ibérica, um reino, ao qual deu um nome derivado do seu:
Lusitânia.
Na realidade, quando os Romanos se estabeleceram na Península Ibérica, por uma questão
administrativa, dividiram-na em três províncias, conservando o nome Lusitânia para toda a
região compreendida a sul do Rio Douro.
No século XVI, os escritores nacionais começaram a usar a palavra Lusitanos como sinónimo de
Portugueses, o que foi aproveitado por Camões.
Foi com base nisso que o poeta criou uma palavra nova que iria dar nome à sua obra épica: Os
Lusíadas, ou seja, o Povo de Luso – os Portugueses.

A Proposição aponta para os quatro planos do poema:
 1. O Plano da Viagem - celebração de uma viagem:
"...da Ocidental praia lusitana / Por mares nunca de antes navegados / Passaram além da
Tapobrana...";
 2. O Plano da História - vai contar-se a história de um povo:
"...o peito ilustre lusitano..."."...as memórias gloriosas / Daqueles Reis que foram dilatando
/ A Fé, o império e as terras viciosas / De África e de Ásia...";
3. O Plano dos Deuses (ou do Maravilhoso) - ao qual os Portugueses se equiparam:
"... esforçados / Mais do que prometia a força humana..."."A quem Neptuno e Marte
obedeceram...";
 4. O Plano do Poeta - em que a voz do poeta se ergue, na primeira pessoa:
"...Cantando espalharei por toda a parte. / Se a tanto me ajudar o engenho e
arte..."."...Que eu canto o peito ilustre lusitano...".



Invocação (C. I, 4-5)
4
E vós, Tágides minhas, pois criado
Tendes em mi um novo engenho ardente,
Se sempre em verso humilde celebrado
Foi de mi vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado,
Um estilo grandíloco e corrente,
Por que de vossas águas Febo ordene
Que não tenham enveja às de Hipocrene.

5
Dai-me ũa fúria grande e sonorosa,
E não de agreste avena ou frauta ruda,
Mas de tuba canora e belicosa,
Que o peito acende e a cor ao gesto muda;
Dai-me igual canto aos feitos da famosa
Gente vossa, que a Marte tanto ajuda;
Que se espalhe e se cante no universo,

Se tão sublime preço cabe em verso.

Invocar significa apelar, pedir, suplicar.
Na Invocação, Camões dirige-se às Tágides, as ninfas do Tejo, pedindo-lhes que o ajudem a cantar os feitos dos portugueses de uma forma sublime:

“Dai-me agora um som alto e sublimado,
Um estilo grandíloco e corrente,”
Tratando-se de um pedido, a Invocação assume a forma de discurso persuasivo, onde predomina a função apelativa da linguagem e as marcas características desse tipo de discurso – o vocativo e os verbos no modo imperativo - determinam a estrutura do texto:

E vós, Tágides minhas, (...)
Dai-me (...)
Dai-me (...)
Dai-me (...)


O poeta pede às Tágides o estilo elevado que a epopeia e a grandiosidade do assunto requerem; o " som alto e sublimado ", exigido pelo " novo engenho ardente " que as ninfas colocaram nele. Como poeta experiente que é, sabe que a tarefa a que agora se propôs exige um estilo e uma linguagem de grau superior, por isso estabelece ao longo das duas estâncias um confronto entre a poesia lírica, há muito por ele cultivada, e a poesia épica, a que agora se abalança.

POESIA LÍRICA
POESIA ÉPICA
verso humilde
agreste avena
frauta ruda

novo engenho ardente
som alto e sublimado
estilo grandíloco e corrente
fúria grande e sonorosa
tuba canora e belicosa

Dedicatória

A dedicatória é uma parte facultativa da estrutura da epopeia. Camões inclui-a n’Os 
Lusíadas ao dedicar a sua obra ao rei D. Sebastião.
Nessa altura, D. Sebastião era ainda muito jovem e por isso era visto como a esperança
da pátria portuguesa na continuação da difusão da fé e do império.
D. Sebastião, rei de Portugal de 1568 a 1578, foi o penúltimo rei antes do domínio
espanhol (1580-1640). O seu prematuro desaparecimento numa manhã de nevoeiro na batalha
de Alcácer Quibir deu origem ao mito sebastianista, um sentimento muito português, que nasceu
de uma lenda e que tem povoado o imaginário coletivo do nosso povo, ao longo dos séculos.

 Para além do elogio ao rei, Camões pretende convencê-lo a aceitar o seu canto, por isso
recorre a uma linguagem argumentativa, sendo a função de linguagem predominante a apelativa.
O poeta recorre a numerosos vocativos, apóstrofes e ao uso frequente do modo imperativo. Há
quem considere que o discurso da Dedicatória segue a estrutura própria do género oratório.
O poeta chama constantemente a atenção do seu destinatário, D. Sebastião, para o que o poema vai celebrar.









domingo, 19 de janeiro de 2014

                Soneto Já Antigo

    Olha, Daisy: quando eu morrer tu hás de
    dizer aos meus amigos aí de Londres,
    embora não o sintas, que tu escondes
    a grande dor da minha morte.  Irás de

    Londres p'ra Iorque, onde nasceste (dizes...
    que eu nada que tu digas acredito),
    contar àquele pobre rapazito
    que me deu tantas horas tão felizes,


    Embora não o saibas, que morri...
    mesmo ele, a quem eu tanto julguei amar,
    nada se importará... Depois vai dar


    a notícia a essa estranha Cecily
    que acreditava que eu seria grande...
    Raios partam a vida e quem lá ande!

                                Álvaro de Campos

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Atos de Fala

Qualquer frase, ao ser enunciada, remete para a realização de três actos: um ato locutório, um ato ilocutório e um ato perlocutório.

O ato locutório corresponde ao acto de pronunciação de palavras e frases que veiculam determinado conteúdo proposicional / mensagem.


Ato Locutório Comportamento verbal governado por regras que permitem a realização da intenção comunicativa. Corresponde ao acto de pronunciação de palavras e frases que veiculam determinado conteúdo proposicional / mensagem.


Atos ilocutórios Produz-se um enunciado e realiza-se uma acção.


Categorias

Objetivos

Marcas Linguísticas

Exemplos

Assertivos

· Traduzem uma posição, uma verdade assumida pelo locutor.

· Verbos declarativos (exs.: afirmar, concluir, declarar, dizer, aceitar, etc.);

· Verbos assertivos (exs.: aceitar, admitir, achar, acreditar, considerar, confessar, discordar, negar, responder, entender, etc.);

· Expressões verbais modalizadas (exs.: considerar / achar necessário, possível, certo; colocar a hipótese de, etc.);

·   Asserções simples (afirmativas/negativas).

· O Eusébio foi um grande futebolista.

· Acredito que o Benfica será campeão.

















Diretivos










· Revelam a intenção de o locutor (através de ordens, sugestões, pedidos, …) conduzir o interlocutor a agir segundo o que lhe é dito, isto é, à realização de uma acção.

· Expressão da ordem, pedido, conselho, aviso, sugestão, instrução através de:

Ø frases de tipo imperativo;

Ø verbos diretivos (exs.: avisar, exigir, implorar, mandar, ordenar, proibir, etc.);

· Expressão de pedidos de informação/confirmação com base em:

Ø frases simples interrogativas;

Øfrases complexas interrogativas dominadas por verbos de inquirição (exs.: perguntar, interrogar, inquirir, investigar, etc.);

Øfrases interrogativas negativas com valor positivo.

· Expressões volitivas do tipo «querer que + verbo”.

· Assine aqui, por favor.

· Não é verdade que demoraste três horas a fazer o teste?


















Expressivos

· Exprimem sentimentos, emoções, estados de espírito do locutor face ao que enuncia.

· Verbos expressivos (exs.: agradecer, compadecer-se, congratular-se, deplorar, desculpar-se, deplorar, felicitar. lamentar, repudiar, etc.);

· Verbos modalizados por advérbios (exs.: achar bem/mal, gostar muito/pouco, etc.);

· Frases de tipo exclamativo.

· Agradeço a tua lembrança.

· Gosto muito de ter aulas de Português.









Compromissivos

·  Traduzem o compromisso de o locutor realizar uma acção futura.

· Frases simples marcadas pelo futuro do indicativo ou outro do mesmo valor;

· Verbos compromissivos (exs.: comprometer-se, garantir, jurar, prometer, tencionar, etc.);

· Fórmulas de despedida que dêem lugar a compromissos futuros;

· Frases complexas, com lógica do tipo condição-consequência, em que a última dá lugar a comprometimento do locutor.

· Logo falto à aula.

· Se não trouxeres o documento assinado pela tua mãe, não irás à visita.









Declarativos

· Expressam o poder (reconhecido institucionalmente) de o locutor criar / transformar uma realidade pelo próprio acto de dizer (actos oficiais: casamentos, reuniões, julgamentos).

· Frases proferidas por locutores institucional ou individualmente reconhecidos com poder, autoridade;

·Verbos declarativos/performativos: declarar, renunciar, nomear, baptizar abrir, encerrar, terminar.

· Os serviços encerram por hoje.









Declarativos assertivos

· Pretendem exprimir o que deve ser considerado como uma verdade a seguir, por o locutor possuir uma autoridade específica que é reconhecida pelo interlocutor.

· Expressões modalizadas: ser fundamental,considerar importante,considerar fundamental,considerar imprescindível.

· É essencial que o senhor traga todos os comprovativos.

· É a resposta da Teresa que está correta.




Ato perlocutório - Refere-se aos efeitos produzidos junto do interlocutor pela realização de determinado acto ilocutório. Podem considerar-se actos perlocutórios «convencer», «persuadir», «ajudar», «atrapalhar» ou «assustar».



Atos ilocutórios indiretosO locutor quer dizer algo diferente daquilo que expressa em sentido literal.


1.Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Ámen - disse o sacerdote. (declarativo)
2.Daqui a uma semana entrego os testes. (compromissivo)
3.Aconselho-o a deixar de fumar ou terá cancro dos pulmões dentro de 3 anos - disse o médico. (declarativo assertivo)
4.Não faças isso, porque faz mal à saúde!(diretivo)
5.Hoje, sinto-me feliz. (expressivo)
6.Hoje, vou ao cinema. (assertivo)
7.Não achas que está muito calor aqui, com as janelas todas fechadas? (diretivo/indireto)


A Morte de Álvaro de Campos

Super-centenário era já, no entanto ao contrário dos outros que o consideravam um caso de notável longevidade e, até, um abençoado. O próprio homem considerava-se antes alguém esquecido pela própria Morte. Apesar da desilusão com a civilização mecânica, Campos manteve-se fiel à civilização digital pois, pela primeira vez, o Homem finalmente estava próximo de ele próprio se tornar uma máquina. E, talvez, sendo as máquinas perfeitas, o Homem se tornasse ele próprio perfeito.
No entanto mesmo os melhores computadores, feitos à imagem do Homem eram também eles de certa forma imprevisíveis e imperfeitos. E apesar de a rede global ter tornado as viagens substancialmente mais baratas, a solidão e nostalgia permaneciam, o tempo já passado ia acumulando e a infância já estava de tal modo distante que parecia antes ter sido vivida por uma outra pessoa, sendo o actual Álvaro um outro indivíduo que possui, por alguma arte, memórias de outra pessoa.
Mas quem será este “novo” Álvaro? De certo, alguém frustrado de estar frustrado… De estar frustrado, os anos são tantos que já perdeu memória de quem é realmente, ou talvez nunca o soube.
A filosofia que aprendera com o seu antigo mestre já pouco se aplicava neste novo Mundo. Uma foto ou um filme que antes eram expressões das sensações puras, a captação pura do real eram agora facilmente manipuláveis.
Tal como um qualquer velho, Campos tinha adoptado uma rotina que mantinha religiosamente.
Efectuava um percurso pela cidade de Lisboa, sempre a pé, todos os dias. O propósito desta caminhada era mais para o próprio confirmar que ainda estava vivo e que as suas pernas super-centenárias ainda funcionavam do que pelo exercício físico. No entanto, com o passar dos anos, este percurso foi alterando com a mudança da morfologia da própria Lisboa. Quando a idade é tão avançada torna-se claro que a cidade é também um ser vivo em constante mudança. Essa mudança tornou-se tão acentuada que a rota diária tinha de ser alterada de tempos a tempos. As estradas deixaram de estar povoadas de animais de transporte e passaram a estar ocupadas de animais que dificultam o transporte.
E enquanto as barulhentas máquinas deusas da locomoção terrestre se poderiam afigurar ao sonho de Campos, a sujidade destas e as bestas que as conduziam transformavam-nas em algo detestável.
À falta de pragas devastadoras e guerras perto de casa, a Morte parecia também difícil de encontrar casualmente e suicídio consciente parecia fora de questão, as memórias da infância mantinham-no são. Mas esta ignóbil vida estava deveras a chegar ao fim.
Era fim de tarde já em Lisboa quando Álvaro decidiu sair das ruas, farto de tão asnática população. É inacreditável que apesar de tantas décadas a cultura Chico-espertista portuguesa continua em demasiada boa forma. Não se sabe se foi esta cultura que pôs o povo português no topo da cadeia alimentar no tempo dos Descobrimentos, mas é certo que tentar ultrapassar em filas usando um vastíssimo arsenal de manobras puníveis por lei/ perigosas é, basicamente, cultural. Cultural é também a veneração aos programas em horário nobre. Apesar da ascensão da inexorável Internet, aqueles das classes mais baixas não dispensam ainda a caixa da cultura da treta. É interessante observar, e Campos como ancião que é o verifica ainda com mais clareza, como a televisão passou de besta a bestial. O que inicialmente era o equivalente socialmente aceitável a fumar marijuana, devido aos efeitos nefastos que provocaria no cérebro tornou-se na maior fonte de cultura da população. Campos não dispensava ver toda a variedade de programas existentes. Um dos elementos mais caracterizadores de um povo são os programas que vêem. E o amor do português ao espectáculo e ao exagerado está bem presente. O português é o tipo de indivíduo que consegue fazer de um incêndio florestal espectáculo cultural. Os programas mais vistos reflectiam toda esta veneração ao sensacionalismo, que apesar da semelhante fonética, é bastante diferente do sensacionismo que Campos tanto gostava nos seus poemas. No entanto, apesar de tudo deve-se dar crédito ao povo português por… o pensamento do velho heterónimo interrompeu-se por aqui quando uma parte do jantar se decidiu vingar. Tratava-se de uma espinha do bacalhau cozido preso na garganta de Campos. Parecia que o próprio peixe já não se sentia digno de ser engolido por alguém de nacionalidade tão reles.
Quando recuperou os sentidos, apenas ouvia o beep pausado da máquina de suporte de vida. Por algum tipo de consequência que só alguém entendido em saúde saberia explicar, a vingativa espinha tinha conseguido pôr o velho poeta em estado crítico. E foi, nesta deprimente condição, que Campos percebeu que finalmente teria atingido o seu sonho: ser um com uma máquina. Infelizmente para ele, este, outrora grande sonho era agora um pesadelo: as máquinas apesar de parecerem grandiosas, são na verdade frágeis, dependentes do Homem e monótonas nas suas acções. As máquinas afiguravam-se mais a cães do que a deuses, e mesmo o melhor amigo do Homem consegue, por vezes, surpreender e adoptar comportamentos inesperados, a máquina nunca foge ao que o seu programador idealizou.
Esta última desilusão acabou com o último sonho de Campos. Porque os sonhos, para se chamarem sonhos, têm um carácter de certa intangibilidade que os tornam algo brilhante, fantástico, maravilhoso e o último objectivo na vida. No entanto quando, por obra da vontade humana, este objectivo perde a sua intangibilidade depressa estes sonhos se mostram como algo bastante terreno e até aborrecido. É nesta fase que se instala a desilusão da qual Álvaro de Campos sofria.
Por, também, consequências médicas, cuja natureza é de difícil explicação, aliás a explicação é até bastante simples mas algo embaraçosa e que deixou os médicos responsáveis prontos a enterrarem-se até ao outro lado do Planeta, pode-se dizer que a partir deste acontecimento o maior uso das licenças médicas de todos os responsáveis seria combustível, se o embaraço e a vergonha fossem comestíveis estava resolvida a crise de falta de alimento em África. Acontece que o pobre desiludido homem sofreu danos cerebrais, todas as memórias de longo prazo, leia-se as mais antigas, tinham sido apagadas. Sem o reconforto das memórias de infância, a última solução seria o suicídio. Acto este que tantos anos de evolução de política social teriam tornado dignificado sob a forma de eutanásia. Enfim, algo de útil que a modernidade trouxe, para além do controlo remoto e do bacalhau embalado em vácuo.
No dia seguinte todos os media noticiavam o mesmo: “morreu um dos maiores poetas de sempre e o Homem mais velho de Portugal”, em seguida mostravam slideshows com antigas fotos de Álvaro enquanto uma voz off lia o seu artigo da Wikipedia. Imediatamente, adivinhando que esta morte estava para breve um escritor de pouca imaginação finalmente publicava uma biografia completa do falecido, enquanto outro publicava um “Álvaro de Campos como nunca antes visto” repleto de escândalos sexuais e outras coisas que agradariam ao público. A velha casa no centro de Lisboa onde vivia foi imediatamente comprada e transformada em museu. Tudo valia para monetizar a custo do defunto, era, afinal, tudo em prol da preservação da Cultura. No entanto, para a perspectiva do povo algo foi bom: finalmente toda a populaça que via televisão depois do trabalho e cuja cultura se resumia a jornais desportivos e o que é que estivesse para ler na sala de espera do dentista sabia quem era Álvaro de Campos.
Era enfim, uma completa celebridade.



André Lopes

Poema em Linha Reta de Álvaro de Campos

Carta da Corcunda ao Serralheiro


Carta lida pela atriz Maria do Céu Guerra ( cliquem aqui para terem acesso ao site e depois procurem um audio situado por baixo da imagem)


De tantas peles que vestiu, usou por uma vez a de uma mulher, Maria José, uma deficiente presa no seu corpo incapaz de inspirar o amor, alguém que vê passar o mundo da sua janela, também ela se sonha ser outra, ser como os outros, como ela imagina que são os outros. É assim essa carta:

“Senhor António:
O senhor nunca há de ver esta carta, nem eu a hei de ver segunda vez porque estou tuberculosa, mas eu quero escrever-lhe ainda que o senhor o não saiba, porque se não escrevo abafo.
O senhor não sabe quem eu sou, isto é, sabe mas não sabe a valer. Tem-me visto à janela quando o senhor passa para a oficina e eu olho para si, porque o espero a chegar, e sei a hora que o senhor chega. Deve sempre ter pensado sem importância na corcunda do primeiro andar da casa amarela, mas eu não penso senão em si. Sei que o senhor tem uma amante, que é aquela rapariga loura alta e bonita; eu tenho inveja dela mas não tenho ciúmes de si porque não tenho direito a ter nada, nem mesmo ciúmes. Eu gosto de si porque gosto de si, e tenho pena de não ser outra mulher, com outro corpo e outro feitio, e poder ir à rua e falar consigo ainda que o senhor me não desse razão de nada, mas eu estimava conhecê-lo de falar.
O senhor é tudo quanto me tem valido na minha doença e eu estou-lhe agradecida sem que o senhor o saiba. Eu nunca poderia ter ninguém que gostasse de mim como se gostasse das pessoas que têm o corpo de que se pode gostar, mas eu tenho o direito de gostar sem que gostem de mim, e também tenho o direito de chorar, que não se negue a ninguém.
Eu gostava de morrer depois de lhe falar a primeira vez mas nunca terei coragem nem maneiras de lhe falar. Gostava que o senhor soubesse que eu gostava muito de si, mas tenho medo que se o senhor soubesse não se importasse nada, e eu tenho pena já de saber que isso é absolutamente certo antes de saber qualquer coisa, que eu mesmo não vou procurar saber.
Eu sou corcunda desde a nascença e sempre riram de mim. Dizem que todas as corcundas são más, mas eu nunca quis mal a ninguém. Além disso sou doente, e nunca tive alma, por causa da doença, para ter grandes raivas. Tenho dezanove anos e nunca sei para que é que cheguei a ter tanta idade, e doente, e sem ninguém que tivesse pena de mim a não ser por eu ser corcunda, que é o menos, porque é a alma que me dói, e não o corpo, pois a corcunda não faz dor.
Eu até gostava de saber como é a sua vida com a sua amiga, porque como é uma vida que eu nunca posso ter — e agora menos que nem vida tenho — gostava de saber tudo.
Desculpe escrever-lhe tanto sem o conhecer, mas o senhor não vai ler isso, e mesmo que lesse nem sabia que era consigo e não ligava importância em qualquer caso, mas gostaria que pensasse que é triste ser marreca e viver sempre só à janela, e ter mãe e irmãs que gostam da gente mas sem ninguém que goste de nós, porque tudo isso é natural e é a família, e o que faltava é que nem isso houvesse para uma boneca com os ossos às avessas como eu sou, como eu já ouvi dizer.
Houve um dia que o senhor vinha para a oficina e um gato se pegou à pancada com um cão aqui defronte da janela, e todos estivemos a ver, e o senhor parou, ao pé do Manuel das Barbas, na esquina do barbeiro, e depois olhou para mim, para a janela, e viu-me a rir e riu também para mim, e essa foi a única vez que o senhor esteve a sós comigo, por assim dizer, que isso nunca poderia eu esperar.
Tantas vezes, o senhor não imagina, andei à espera que houvesse outra coisa qualquer na rua quando o senhor passasse e eu pudesse outra vez ver o senhor a ver e talvez olhasse para mim e eu pudesse olhar para si e ver os seus olhos a direito para os meus.
Mas eu não consigo nada do que quero, nasci já assim, e até tenho que estar em cima de um estrado para poder estar à altura da janela. Passo todo o dia a ver ilustrações e revistas de modas que emprestam à minha mãe, e estou sempre a pensar noutra coisa, tanto que quando me perguntam como era aquela saia ou quem é que estava no retrato onde está a Rainha de Inglaterra, eu às vezes me envergonho de não saber, porque estive a ver coisas que não podem ser e que eu não posso deixar que me entrem na cabeça e me dêem alegria para eu depois ainda por cima ter vontade de chorar.
Depois todos me desculpam, e acham que sou tonta, mas não me julgam parva, porque ninguém julga isso, e eu chego a não ter pena da desculpa, porque assim não tenho que explicar porque é que estive distraída.
Ainda me lembro daquele dia que o senhor passou aqui ao Domingo com o fato azul claro. Não era azul claro, mas era uma sarja muito clara para o azul escuro que costuma ser. O senhor ia que parecia o próprio dia que estava lindo e eu nunca tive tanta inveja de toda a gente como nesse dia. Mas não tive inveja da sua amiga, a não ser que o senhor não fosse ter com ela mas com outra qualquer, porque eu não pensei senão em si, e foi por isso que invejei toda a gente, o que não percebo mas o certo é que é verdade.
Não é por ser corcunda que estou aqui sempre à janela, mas é que ainda por cima tenho uma espécie de reumatismo nas pernas e não me posso mexer, e assim estou como se fosse paralítica, o que é uma maçada para todos cá em casa e eu sinto ter que ser toda a gente a aturar-me e a ter que me aceitar que o senhor não imagina. Eu às vezes dá-me um desespero como se me pudesse atirar da janela abaixo, mas eu que figura teria a cair da janela? Até quem me visse cair ria e a janela é tão baixa que eu nem morreria, mas era ainda mais maçada para os outros, e estou a ver-me na rua como uma macaca, com as pernas à vela e a corcunda a sair pela blusa e toda a gente a querer ter pena mas a ter nojo ao mesmo tempo ou a rir se calhasse, porque a gente é como é e não como tinha vontade de ser.
O senhor que anda de um lado para o outro não sabe qual é o peso de a gente não ser ninguém. Eu estou à janela todo o dia e vejo toda a gente passar de um lado para o outro e ter um modo de vida e gozar e falar a esta e àquela, e parece que sou um vaso com uma planta murcha que ficou aqui à janela por tirar de lá.
O senhor não pode imaginar, porque é bonito e tem saúde o que é a gente ter nascido e não ser gente, e ver nos jornais o que as pessoas fazem, e uns são ministros e andam de um lado para o outro a visitar todas as terras, e outros estão na vida da sociedade e casam e têm batizados e estão doentes e fazem-lhe operações os mesmos médicos, e outros partem para as suas casas aqui e ali, e outros roubam e outros queixam-se, e uns fazem grandes crimes e há artigos assinados por outros e retratos e anúncios com os nomes dos homens que vão comprar as modas ao estrangeiro, e tudo isto o senhor não imagina o que é para quem é um trapo como eu que ficou no parapeito da janela de limpar o sinal redondo dos vasos quando a pintura é fresca por causa da água.
Se o senhor soubesse isto tudo era capaz de vez em quando me dizer adeus da rua, e eu gostava de se lhe poder pedir isso, porque o senhor não imagina, eu talvez não vivesse mais, que pouco é o que tenho de viver, mas eu ia mais feliz lá para onde se vai se soubesse que o senhor me dava os bons dias por acaso.
A Margarida costureira diz que lhe falou uma vez, que lhe falou torto porque o senhor se meteu com ela na rua aqui ao lado, e essa vez é que eu senti inveja a valer, eu confesso porque não lhe quero mentir, senti inveja porque meter-se alguém connosco é a gente ser mulher, e eu não mulher nem homem, porque ninguém acha que eu sou nada a não ser uma espécie de gente que está para aqui a encher o vão da janela e a aborrecer tudo que me vêm, valha me Deus.
O António (é o mesmo nome que o seu, mas que diferença!) o António da oficina de automóveis disse uma vez a meu pai que toda a gente deve produzir qualquer coisa, que sem isso não há direito a viver, que quem não trabalha não come e não há direito a haver quem não trabalhe. E eu pensei que faço eu no mundo, que não faço nada senão estar à janela com toda a gente a mexer-se de um lado para o outro, sem ser paralítica, e tendo maneira de encontrar as pessoas de quem gosta, e depois poderia produzir à vontade o que fosse preciso porque tinha gosto para isso.
Adeus senhor António, eu não tenho senão dias de vida e escrevo esta carta só para a guardar no peito como se fosse uma carta que o senhor me escrevesse em vez de eu a escrever a si. Eu desejo que o senhor tenha todas as felicidades que possa desejar e que nunca saiba de mim para não rir porque eu sei que não posso esperar mais.
Eu amo o senhor com toda a minha alma e toda a minha vida.
Aí tem e estou toda a chorar."
"Carta da Corcunda para o Serralheiro"



sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Álvaro de Campos - Poemas da 2ª fase

Fase Sensacionista-   produz, com um estilo assemelhado ao de Walt Whitman, versilibrista, jactante, e com uma linguagem eufórica onde abundam as onomatopeias, uma série de poemas de exaltação do Mundo moderno, do progresso técnico e científico, da evolução e industrialização da Humanidade: é muito influenciado por Marinetti, um dos nomes cimeiros do Futurismo neste período.

Saudação a Walt Whitman 


Portugal-Infinito, onze de junho de mil novecentos e quinze...
Hé-lá-á-á-á-á-á-á!

De aqui de Portugal, todas as épocas no meu cérebro,
Saúdo-te, Walt, saúdo-te, meu irmão em Universo,
Eu, de monóculo e casaco exageradamente cintado,
Não sou indigno de ti, bem o sabes, Walt,
Não sou indigno de ti, basta saudar-te para o não ser...
Eu tão contíguo à inércia, tão facilmente cheio de tédio,
Sou dos teus, tu bem sabes, e compreendo-te e amo-te,
E embora te não conhecesse, nascido pelo ano em que morrias,
Sei que me amaste também, que me conheceste, e estou contente.
Sei que me conheceste, que me contemplaste e me explicaste,
Sei que é isso que eu sou, quer em Brooklyn Ferry dez anos antes de eu nascer,
Quer pela Rua do Ouro acima pensando em tudo que não é a Rua do Ouro,
E conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá estamos de mãos dadas,
De mãos dadas, Walt, de mãos dadas, dançando o universo na alma.

Ó sempre moderno e eterno, cantor dos concretos absolutos,
Concubina fogosa do universo disperso,
Grande pederasta roçando-te contra a diversidade das coisas,
Sexualizado pelas pedras, pelas árvores, pelas pessoas, pelas profissões,
Cio das passagens, dos encontros casuais, das meras observações,
Meu entusiasta pelo conteúdo de tudo,
Meu grande herói entrando pela Morte dentro aos pinotes,
E aos urros, e aos guinchos, e aos berros saudando Deus!

Cantor da fraternidade feroz e terna com tudo,
Grande democrata epidérmico, contíguo a tudo em corpo e alma,
Carnaval de todas as acções, bacanal de todos os propósitos,
Irmão gémeo de todos os arrancos,
Jean-Jacques Rousseau do mundo que havia de produzir máquinas,
Homero do insaisissable do flutuante carnal,
Shakespeare da sensação que começa a andar a vapor,
Milton-Shelley do horizonte da Electricidade futura!
Íncubo de todos os gestos,
Espasmo pra dentro de todos os objectos-força,
Souteneur de todo o Universo,
Rameira de todos os sistemas solares...

Quantas vezes eu beijo o teu retrato!
Lá onde estás agora (não sei onde é mas é Deus)
Sentes isto, sei que o sentes, e os meus beijos são mais quentes (em gente)
E tu assim é que os queres, meu velho, e agradeces de lá —,
Sei-o bem, qualquer coisa mo diz, um agrado no meu espírito

Uma ereção abstrata e indirecta no fundo da minha alma.

Nada do engageant em ti, mas ciclópico e musculoso,
Mas perante o Universo a tua atitude era de mulher,
E cada erva, cada pedra, cada homem era para ti o Universo.

Meu velho Walt, meu grande Camarada, evohé!
Pertenço à tua orgia báquica de sensações-em-liberdade,
Sou dos teus, desde a sensação dos meus pés até à náusea em meus sonhos,
Sou dos teus, olha pra mim, de aí desde Deus vês-me ao contrário:
De dentro para fora... Meu corpo é o que adivinhas, vês a minha alma —
Essa vês tu propriamente e através dos olhos dela o meu corpo —
Olha pra mim: tu sabes que eu, Álvaro de Campos, engenheiro,
Poeta sensacionista,
Não sou teu discípulo, não sou teu amigo, não sou teu cantor,
Tu sabes que eu sou Tu e estás contente com isso!

Nunca posso ler os teus versos a fio... Há ali sentir demais...
Atravesso os teus versos como a uma multidão aos encontrões a mim,
E cheira-me a suor, a óleos, a actividade humana e mecânica.
Nos teus versos, a certa altura não sei se leio ou se vivo,
Não sei se o meu lugar real é no mundo ou nos teus versos,

Não sei se estou aqui, de pé sobre a terra natural,
Ou de cabeça pra baixo, pendurado numa espécie de estabelecimento,
No tecto natural da tua inspiração de tropel,
No centro do tecto da tua intensidade inacessível.

Abram-me todas as portas!
Por força que hei de passar!
Minha senha? Walt Whitman!
Mas não dou senha nenhuma...
Passo sem explicações...
Se for preciso meto dentro as portas...
Sim — eu, franzino e civilizado, meto dentro as portas,
Porque neste momento não sou franzino nem civilizado,
Sou EU, um universo pensante de carne e osso, querendo passar,
E que há de passar por força, porque quando quero passar sou Deus!

Tirem esse lixo da minha frente!
Metam-me em gavetas essas emoções!
Daqui pra fora, políticos, literatos,
Comerciantes pacatos, polícia, meretrizes, souteneurs,
Tudo isso é a letra que mata, não o espírito que dá a vida.
O espírito que dá a vida neste momento sou EU!

Que nenhum filho da... se me atravesse no caminho!
O meu caminho é pelo infinito fora até chegar ao fim!
Se sou capaz de chegar ao fim ou não, não é contigo,
É comigo, com Deus, com o sentido-eu da palavra Infinito...
Prà frente!
Meto esporas!
Sinto as esporas, sou o próprio cavalo em que monto,
Porque eu, por minha vontade de me consubstanciar com Deus,
Posso ser tudo, ou posso ser nada, ou qualquer coisa,
Conforme me der na gana... Ninguém tem nada com isso...
Loucura furiosa! Vontade de ganir, de saltar,
De urrar, zurrar, dar pulos, pinotes, gritos com o corpo,
De me cramponner às rodas dos veículos e meter por baixo,
De me meter adiante do giro do chicote que vai bater,
De ser a cadela de todos os cães e eles não bastam,
De ser o volante de todas as máquinas e a velocidade tem limite,
De ser o esmagado, o deixado, o deslocado, o acabado,
Dança comigo, Walt, lá do outro mundo, esta fúria,
Salta comigo neste batuque que esbarra com os astros,
Cai comigo sem forças no chão,
Esbarra comigo tonto nas paredes,
Parte-te e esfrangalha-te comigo
Em tudo, por tudo, à roda de tudo, sem tudo,
Raiva abstracta do corpo fazendo maelstroms na alma...

Arre!  Vamos lá prà frente!
Se o próprio Deus impede, vamos lá pra frente... Não faz diferença...
Vamos lá prà frente sem ser para parte nenhuma
Infinito! Universo! Meta sem meta! Que importa?

(Deixa-me tirar a gravata e desabotoar o colarinho.
Não se pode ter muita energia com a civilização à roda do pescoço ...)
Agora, sim, partamos, vá lá prà frente.

Numa grande marche aux flabeux-todas-as-cidades-da-Europa,
Numa grande marcha guerreira a indústria, o comércio e ócio,
Numa grande corrida, numa grande subida, numa grande descida
Estrondeando, pulando, e tudo pulando comigo,
Salto a saudar-te,
Berro a saudar-te,
Desencadeio-me a saudar-te, aos pinotes, aos pinos, aos guinos!

Por isso é a ti que endereço
Meus versos saltos, meus versos pulos, meus versos espasmos
Os meus versos-ataques-histéricos,
Os meus versos que arrastam o carro dos meus nervos.

Aos trambolhões me inspiro,
Mal podendo respirar, ter-me de pé me exalto,
E os meus versos são eu não poder estoirar de viver.

Abram-me todas as janelas!
Arranquem-me todas as portas!
Puxem a casa toda para cima de mim!
Quero viver em liberdade no ar,
Quero ter gestos fora do meu corpo,
Quero correr como a chuva pelas paredes abaixo,
Quero ser pisado nas estradas largas como as pedras,
Quero ir, como as coisas pesadas, para o fundo dos mares,
Com uma voluptuosidade que já está longe de mim!

Não quero fechos nas portas!
Não quero fechaduras nos cofres!
Quero intercalar-me, imiscuir-me, ser levado,
Quero que me façam pertença doída de qualquer outro,
Que me despejem dos caixotes,
Que me atirem aos mares,
Que me vão buscar a casa com fins obscenos,
Só para não estar sempre aqui sentado e quieto,
Só para não estar simplesmente escrevendo estes versos!

Não quero intervalos no mundo!
Quero a contigüidade penetrada e material dos objetos!
Quero que os corpos físicos sejam uns dos outros como as almas,
Não só dinamicamente, mas estaticamente também!

Quero voar e cair de muito alto!
Ser arremessado como uma granada!
Ir parar a... Ser levado até...
Abstracto auge no fim de mim e de tudo!

Clímax a ferro e motores!
Escadaria pela velocidade acima, sem degraus!
Bomba hidráulica desancorando-me as entranhas sentidas!

Ponham-me grilhetas só para eu as partir!
Só para eu as partir com os dentes, e que os dentes sangrem
Gozo masoquista, espasmódico a sangue, da vida!

Os marinheiros levaram-me preso,
As mãos apertaram-me no escuro,
Morri temporariamente de senti-lo,
Seguiu-se a minh'alma a lamber o chão do cárcere privado,
E a cegarrega das impossibilidades contornando o meu acinte.

Pula, salta, toma o freio nos dentes,
Pégaso-ferro-em-brasa das minhas ânsias inquietas,
Paradeiro indeciso do meu destino a motores!

He calls Walt:

Porta pra tudo!
Ponte pra tudo!
Estrada pra tudo!
Tua alma omnívora,
Tua alma ave, peixe, fera, homem, mulher,
Tua alma os dois onde estão dois,
Tua alma o um que são dois quando dois são um,
Tua alma seta, raio, espaço,
Amplexo, nexo, sexo, Texas, Carolina, New York,
Brooklyn Ferry à tarde,
Brooklyn Ferry das idas e dos regressos,
Libertad! Democracy! Século vinte ao longe!
Pum! pum! pum! pum! pum!
PUM!

Tu, o que eras, tu o que vias, tu o que ouvias,
O sujeito e o objecto, o activo e o passivo,
Aqui e ali, em toda a parte tu,
Círculo fechando todas as possibilidades de sentir,
Marco miliário de todas as coisas que podem ser,
Deus Termo de todos os objectos que se imaginem e és tu!
Tu Hora,
Tu Minuto,
Tu Segundo!
Tu intercalado, liberto, desfraldado, ido,
Intercalamento, libertação, ida, desfraldamento,
Tu intercalador, libertador, desfraldador, remetente,
Carimbo em todas as cartas,
Nome em todos os endereços,
Mercadoria entregue, devolvida, seguindo...
Comboio de sensações a alma-quilómetros à hora,
À hora, ao minuto, ao segundo, PUM!

Agora que estou quase na morte e vejo tudo já claro,
Grande Libertador, volto submisso a ti.

Sem dúvida teve um fim a minha personalidade.
Sem dúvida porque se exprimiu, quis dizer qualquer coisa
Mas hoje, olhando para trás, só uma ânsia me fica —
Não ter tido a tua calma superior a ti-próprio,
A tua libertação constelada de Noite Infinita.

Não tive talvez missão alguma na terra.

Heia que eu vou chamar
Ao privilégio ruidoso e ensurdecedor de saudar-te
Todo o formilhamento humano do Universo,
Todos os modos de todas as emoções
Todos os feitios de todos os pensamentos,
Todas as rodas, todos os volantes, todos os êmbolos da alma.

Heia que eu grito
E num cortejo de Mim até ti estardalhaçam
Com uma algaravia metafisica e real,
Com um chinfrim de coisas passado por dentro sem nexo.

Ave, salve, viva, ó grande bastardo de Apolo,
Amante impotente e fogoso das nove musas e das graças,
Funicular do Olimpo até nós e de nós ao Olimpo.

Álvaro de Campos



Breve análise

O poema foi escrito na primeira pessoa. O poeta fala de si mesmo, está na obra como ator. É um elemento do mundo expresso pela obra, que irradia esse mundo, mas também pertence a ele: o poeta está inserido no poema.

No entanto, mesmo quando o poema está escrito na primeira pessoa, há sempre alguém na sua base: o verdadeiro poeta. Esse poeta arca com o peso da obra, expressando muito mais do que suas emoções: o que ele expressa é transcendental. Ele expressa um mundo, sendo o correlato desse mundo; não é simplesmente aquele que o povoa, mas aquele que o vive e com o qual se harmoniza.

No poema de Álvaro de Campos, o poeta transmite a sensação de um nervosismo que beira a histeria e afirma ter dúvidas quanto à utilidade da própria existência. Diz explicitamente que lamenta não ter tido a "calma superior" do poeta americano.

Na Saudação a Walt Whitman, três versos dão conta da natureza futurista de que era feito Álvaro de Campos. Assim ele classifica o poeta americano:

Jean-Jacques Rousseau do mundo que havia de produzir máquina,
Shakespeare da sensação que começa a andar a vapor,
Milton-Shelley do horizonte da Eletricidade futura.


Cada um dos autores citados, de algum modo luminares do mundo das idéias, se resume num Whitman que prenuncia a democracia e suas conquistas técnicas. O futurismo de Álvaro de Campos não é do tipo que empresta às banalidades da vida moderna o estatuto de poesia ou que tenta consolidar novos cânones em detrimento de outros fundadores do pensamento que lhe é contemporâneo. Álvaro de Campos extrai do moderno o perene, atualiza a ideia e o conceito na matéria viva, revela o eterno no aparentemente transitório.



Walt Whitman (Huntington, 31 de maio de 1819 – Camden, 26 de março de 1892) foi um poeta, ensaísta e jornalista norte-americano, considerado por muitos como o "pai do verso livre".


No início de Julho de 1855 publicou a primeira edição de "Leaves of Grass", impressa na Rome Brothers de Brooklyn e cujos custos Whitman suportou. Os versos deste livro eram livres, longos e brancos, imitando os ritmos da fala.
A primeira edição da obra mais importante da sua carreira, não mencionava o nome do autor, e continha apenas 12 poemas e um prefácio.

A obra poética de Whitman centra-se na colectânea "Leaves of Grass", dado que ao longo da sua vida o escritor se dedicou a rever e completar aquele livro, que teve oito edições durante a vida do poeta.

Nos seus poemas, Walt Whitman elevou a condição do homem moderno, celebrando a natureza humana e a vida em geral em termos pouco convencionais. Na sua obra "Leaves of Grass", Whitman exprime em poemas visionários um certo panteísmo e um ideal de unidade cósmica que o Eu representa. Profundamente identificado com os ideais democráticos da nação americana, Whitman não deixou de celebrar o futuro da América.
O desejo de Walt Whitman foi sempre o de cantar em verso livre o homem moderno, o homem novo, com uma voz alegre, livre de inibições, enérgica e optimista, humana e humanitária, em contacto íntimo com a natureza e com a grandiloquência da América.


Ficou ainda mais conhecido mundialmente a partir das citações inseridas no enredo do filme O Clube dos Poetas Mortos. ( Oh Captain, my captain)
Introduziu uma nova subjectividade na concepção poética e fez da sua poesia um hino à vida. A técnica inovadora dos seus poemas, nos quais a ideia de totalidade se traduziu no verso livre, influenciou não apenas a literatura americana posterior, mas todo o lirismo moderno, incluindo o poeta e ensaísta português Fernando Pessoa.

As influências de Whitman são claramente visíveis na fase futurista de Álvaro de Campos. Ambos os poetas personificam o poeta do mundo actual.
Álvaro de Campos rompe com o passado, exprimindo pela arte o dinamismo da vida moderna. Sob a forma de odes, celebra o triunfo da máquina e da civilização moderna, as conquistas da técnica moderna. É o cantor da energia e do progresso. Exalta o presente e o futuro, revigora com a energia, recusa as verdades definitivas.




Ode Marítima

Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh'alma está com o que vejo menos,
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.

Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente,

Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É — sinto-o em mim como o meu sangue -
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui...

Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve como uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.

Ah, quem sabe, quem sabe,
Se não parti outrora, antes de mim,
Dum cais; se não deixei, navio ao sol
Oblíquo da madrugada,
Uma outra espécie de porto?
Quem sabe se não deixei, antes de a hora
Do mundo exterior como eu o vejo
Raiar-se para mim,
Um grande cais cheio de pouca gente,
Duma grande cidade meio-desperta,
Duma enorme cidade comercial, crescida, apoplética,
Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do Tempo?

Sim, dum cais, dum cais dalgum modo material,
Real, visível como cais, cais realmente,
O Cais Absoluto por cujo modelo inconscientemente imitado
Insensivelmente evocado,
Nós os homens construímos
Os nossos cais de pedra atual sobre água verdadeira,
Que depois de construídos se anunciam de repente
Coisas-Reais, Espíritos-Coisas, Entidades em Pedra-Almas,
A certos momentos nossos de sentimento-raiz
Quando no mundo-exterior como que se abre uma porta
E, sem que nada se altere,
Tudo se revela diverso.

Ah o Grande Cais donde partimos em Navios-Nações!
O Grande Cais Anterior, eterno e divino!
De que porto? Em que águas? E porque penso eu isto?
Grandes Cais como os outros cais, mas o Único.
Cheio como eles de silêncios rumorosos nas antemanhãs,
E desabrochando com as manhãs num ruído de guindastes
E chegadas de comboios de mercadorias,
E sob a nuvem negra e ocasional e leve
Do fundo das chaminés das fábricas próximas
Que lhe sombreia o chão preto de carvão pequenino que brilha,
Como se fosse a sombra duma nuvem que passasse sobre água sombria.

Ah, que essencialidade de mistério e sentido parados
Em divino êxtase revelador
Às horas cor de silêncios e angústias
Não é ponte entre qualquer cais e O Cais!

Cais negramente refletido nas águas paradas,
Bulício a bordo dos navios,
Ó alma errante e instável da gente que anda embarcada,
Da gente simbólica que passa e com quem nada dura,
Que quando o navio volta ao porto
Há sempre qualquer alteração a bordo!

Ó fugas contínuas, idas, ebriedade do Diverso!
Alma eterna dos navegadores e das navegações!
Cascos refletidos devagar nas águas,
Quando o navio larga do porto!
Flutuar como alma da vida, partir como voz,
Viver o momento tremulamente sobre águas eternas.
Acordar para dias mais diretos que os dias da Europa,
Ver portos misteriosos sobre a solidão do mar,
Virar cabos longínquos para súbitas vastas paisagens
Por inumeráveis encostas atónitas...

Ah, as praias longínquas, os cais vistos de longe,
E depois as praias próximas, os cais vistos de perto.
O mistério de cada ida e de cada chegada,
A dolorosa instabilidade e incompreensibilidade
Deste impossível universo
A cada hora marítima mais na própria pele sentido!
O soluço absurdo que as nossas almas derramaram
Sobre as extensões de mares diferentes com ilhas ao longe,
Sobre as ilhas longínquas das costas deixadas passar,
Sobre o crescer nítido dos portos, com as suas casas e a sua gente,
Para o navio que se aproxima.

Ah, a frescura das manhãs em que se chega,
E a palidez das manhãs em que se parte,
Quando as nossas entranhas se arrepanham
E uma vaga sensação parecida com um medo
- O medo ancestral de se afastar e partir,
O misterioso receio ancestral à Chegada e ao Novo -
Encolhe-nos a pele e agonia-nos,
E todo o nosso corpo angustiado sente,
Como se fosse a nossa alma,
Uma inexplicável vontade de poder sentir isto doutra maneira:
Uma saudade a qualquer coisa,
Uma perturbação de afeições a que vaga pátria?
A que costa? a que navio? a que cais?
Que se adoece em nós o pensamento,
E só fica um grande vácuo dentro de nós,
Uma oca saciedade de minutos marítimos,
E uma ansiedade vaga que seria tédio ou dor
Se soubesse como sê-lo...

A manhã de Verão está, ainda assim, um pouco fresca.
Um leve torpor de noite anda ainda no ar sacudido.
Acelera-se ligeiramente o volante dentro de mim.
E o paquete vem entrando, porque deve vir entrando sem dúvida,
E não porque eu o veja mover-se na sua distância excessiva.

Na minha imaginação ele está já perto e é visível
Em toda a extensão das linhas das suas vigias.
E treme em mim tudo, toda a carne e toda a pele,
Por causa daquela criatura que nunca chega em nenhum barco
E eu vim esperar hoje ao cais, por um mandado oblíquo.
Os navios que entram a barra,
Os navios que saem dos portos,
Os navios que passam ao longe
(Suponho-me vendo-os duma praia deserta) -
Todos estes navios abstratos quase na sua ida,
Todos estes navios assim comovem-me como se fossem outra coisa
E não apenas navios, navios indo e vindo.

E os navios vistos de perto, mesmo que se não vá embarcar neles,
Vistos de baixo, dos botes, muralhas altas de chapas,
Vistos dentro, através das câmaras, das salas, das despensas,
Olhando de perto os mastros, afilando-se lá pró alto,
Roçando pelas cordas, descendo as escadas incómodas,
Cheirando a untada mistura metálica e marítima de tudo aquilo -
Os navios vistos de perto são outra coisa e a mesma coisa,
Dão a mesma saudade e a mesma ânsia doutra maneira.

Toda a vida marítima! tudo na vida marítima!
Insinua-se no meu sangue toda essa sedução fina
E eu cismo indeterminadamente as viagens.
Ah, as linhas das costas distantes, achatadas pelo horizonte!
Ah, os cabos, as ilhas, as praias areentas!
As solidões marítimas, como certos momentos no Pacífico
Em que não sei por que sugestão aprendida na escola
Se sente pesar sobre os nervos o fato de que aquele é o maior dos oceanos
E o mundo e o sabor das coisas tornam-se um deserto dentro de nós!
A extensão mais humana, mais salpicada, do Atlântico!
O indico, o mais misterioso dos oceanos todos!
O Mediterrâneo, doce, sem mistério nenhum, clássico, um mar para bater
De encontro a esplanadas olhadas de jardins próximos por estátuas brancas!
Todos os mares, todos os estreitos, todas as baías, todos os golfos,
Queria apertá-los ao peito, senti-los bem e morrer!

E vós, ó coisas navais, meus velhos brinquedos de sonho!
Componde fora de mim a minha vida interior!
Quilhas, mastros e velas, rodas do leme, cordagens,
Chaminés de vapores, hélices, gáveas, flámulas,
Galdropes, escotilhas, caldeiras, coletores, válvulas;
Caí por mim dentro em montão, em monte,
Como o conteúdo confuso de uma gaveta despejada no chão!
Sede vós o tesouro da minha avareza febril,
Sede vós os frutos da árvore da minha imaginação,
Tema de cantos meus, sangue nas veias da minha inteligência,
Vosso seja o laço que me une ao exterior pela estética,
Fornecei-me metáforas imagens, literatura,
Porque em real verdade, a sério, literalmente,
Minhas sensações são um barco de quilha pro ar,
Minha imaginação uma ancora meio submersa,
Minha ânsia um remo partido,
E a tessitura dos meus nervos uma rede a secar na praia!

Soa no acaso do rio um apito, só um.
Treme já todo o chão do meu psiquismo.
Acelera-se cada vez mais o volante dentro de mim.

Ah, os paquetes, as viagens, o não-se-saber-o-paradeiro
De Fulano-de-tal, marítimo, nosso conhecido!
Ah, a glória de se saber que um homem que andava conosco
Morreu afogado ao pé duma ilha do Pacífico!
Nós que andamos com ele vamos falar nisso a todos,
Com um orgulho legítimo, com uma confiança invisível
Em que tudo isso tenha um sentido mais belo e mais vasto
Que apenas o ter-se perdido o barco onde ele ia
E ele ter ido ao fundo por lhe ter entrado água pros pulmões!

Ah, os paquetes, os navios-carvoeiros, os navios de vela!
Vão rareando - ai de mim! - os navios de vela nos mares!
E eu, que amo a civilização moderna, eu que beijo com a alma as máquinas,
Eu o engenheiro, eu o civilizado, eu o educado no estrangeiro,
Gostaria de ter outra vez ao pé da minha vista só veleiros e barcos de madeira,
De não saber doutra vida marítima que a antiga vida dos mares!
Porque os mares antigos são a Distância Absoluta,
O Puro Longe, liberto do peso do Atual...
E ah, como aqui tudo me lembra essa vida melhor,
Esses mares, maiores, porque se navegava mais devagar.
Esses mares, misteriosos, porque se sabia menos deles.

Todo o vapor ao longe é um barco de vela perto.
Todo o navio distante visto agora é um navio no passado visto próximo.
Todos os marinheiros invisíveis a bordo dos navios no horizonte
São os marinheiros visíveis do tempo dos velhos navios,
Da época lenta e veleira das navegações perigosas,
Da época de madeira e lona das viagens que duravam meses.

Toma-me pouco a pouco o delírio das coisas marítimas,
Penetram-me fisicamente o cais e a sua atmosfera,
O marulho do Tejo galga-me por cima dos sentidos,
E começo a sonhar, começo a envolver-me do sonho das águas,
Começam a pegar bem as correias-de-transmissão na minh'alma
E a aceleração do volante sacode-me nitidamente.

Chamam por mim as águas,
Chamam por mim os mares,
Chamam por mim, levantando uma voz corpórea, os longes,
As épocas marítimas todas sentidas no passado, a chamar.

Tu, marinheiro inglês, Jim Barns meu amigo, foste tu
Que me ensinaste esse grito antiquíssimo, inglês,
Que tão venenosamente resume
Para as almas complexas como a minha
O chamamento confuso das águas,
A voz inédita e implícita de todas as coisas do mar,
Dos naufrágios, das viagens longínquas, das travessias perigosas.
Esse teu grito inglês, tornado universal no meu sangue,
Sem feitio de grito, sem forma humana nem voz,
Esse grito tremendo que parece soar
De dentro duma caverna cuja abóbada é o céu
E parece narrar todas as sinistras coisas
Que podem acontecer no Longe, no Mar, pela Noite...
(Fingias sempre que era por uma escuna que chamavas,
E dizias assim, pondo uma mão de cada lado da boca,
Fazendo porta-voz das grandes mãos curtidas e escuras:

Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò - yyy...
Schooner ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-oò -yyy...)

Escuto-te de aqui, agora, e desperto a qualquer coisa.
Estremece o vento. Sobe a manhã. O calor abre.
Sinto corarem-me as faces.
Meus olhos conscientes dilatam-se.
O êxtase em mim levanta-se, cresce, avança,
E com um ruído cego de arruaça acentua-se
O giro vivo do volante.

Ó clamoroso chamamento
A cujo calor, a cuja fúria fervem em mim
Numa unidade explosiva todas as minhas ânsias,
Meus próprios tédios tornados dinâmicos, todos!...
Apelo lançado ao meu sangue
Dum amor passado, não sei onde, que volve
E ainda tem força para me atrair e puxar,
Que ainda tem força para me fazer odiar esta vida
Que passo entre a impenetrabilidade física e psíquica
Da gente real com que vivo!

Ah seja como for, seja por onde for, partir!
Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar.
Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstrata,
Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas,
Levado, como a poeira, plos ventos, plos vendavais!
Ir, ir, ir, ir de vez!

Todo o meu sangue raiva por asas!
Todo o meu corpo atira-se pra frente!
Galgo pla minha imaginação fora em torrentes!
Atropelo-me, rujo, precipito-me
Estoiram em espuma as minhas ânsias
E a minha carne é uma onda dando de encontro a rochedos!

Pensando nisto - ó raiva! pensando nisto - ó fúria!
Pensando nesta estreiteza da minha vida cheia de ânsias,
Subitamente, tremulamente extraorbitadamente,
Com uma oscilação viciosa, vasta, violenta,
Do volante vivo da minha imaginação.
Rompe, por mim, assobiando, silvando, vertiginando,
O cio sombrio e sádico da estrídula vida marítima.

Eh marinheiros, gajeiros! eh tripulantes, pilotos!
Navegadores, mareantes, marujos, aventureiros!
Eh capitães de navios! homens ao leme e em mastros!
Homens que dormem em beliches rudes!
Homens que dormem co'o Perigo a espreitar plas vigias!
Homens que dormem co'a Morte por travesseiro!
Homens que têm tombadilhos, que têm pontes donde olhar
A imensidade imensa do mar imenso!
Eh manipuladores dos guindastes de carga!
Eh amainadores de velas, fagueiros, criados de bordo!
Homens que metem a carga nos porões!
Homens que enrolam cabos no convés!
Homens que limpam os metais das escotilhas!
Homens do leme! homens das máquinas! homens dos mastros!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Gente de boné de pala! Gente de camisola de malha!
Gente de âncoras e bandeiras cruzadas bordadas no peito!
Gente tatuada! gente de cachimbo! gente de amurada!
Gente escura de tanto sol, crestada de tanta chuva,
Limpa de olhos de tanta imensidade diante deles,
Audaz de rosto de tantos ventos que lhes bateram a valer!

Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Homens que vistes a Patagónia!
Homens que passasses pela Austrália!
Que enchesses o vosso olhar de costas que nunca verei!
Que fostes a terra em terras onde nunca descerei!
Que comprastes artigos toscos em colónias à proa de sertões!
E fizestes tudo isso como se não fosse nada,
Como se isso fosse natural,
Como se a vida fosse isso,
Como nem sequer cumprindo um destino!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Homens do mar atual! homens do mar passado!
Comissários de bordo! escravos das galés! combatentes de Lepanto!
Piratas do tempo de Roma! Navegadores da Grécia!
Fenícios! Cartagineses! Portugueses atirados de Sagres
Para a aventura indefinida, para o Mar Absoluto, para realizar o Impossível!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Homens que erguestes padrões, que destes nomes a cabos!
Homens que negociastes pela primeira vez com pretos!
Que primeiro vendesses escravos de novas terras!
Que destes o primeiro espasmo europeu às negras atónitas
Que trouxesses ouro, miçanga, madeiras cheirosas, setas,
De encostas explodindo em verde vegetação!
Homens que saqueasses tranquilas povoações africanas
Que fizestes fugir com o ruído de canhões essas raças
Que matastes, roubastes, torturastes, ganhastes
Os prémios de Novidade de quem, de cabeça baixa
Arremete contra o mistério de novos mares! Eh-eh-eh eh-eh!
A vós todos num, a vós todos em vós todos como um,
A vós todos misturados, entrecruzados.
A vós todos sangrentos, violentos, odiados, temidos, sagrados,
Eu vos saúdo, eu vos saúdo, eu vos saúdo!
Eh-eh-eh-eh eh! Eh eh-eh-eh eh! Eh-eh-eh eh-eh-eh eh!
Eh lahô-lahô laHO-lahá-á-á-à-à!

Quero ir convosco, quero ir convosco,
Ao mesmo tempo com vós todos
Pra toda a parte pr'onde fostes!
Quero encontrar vossos perigos frente a frente,
Sentir na minha cara os ventos que engelharam as vossa
Cuspir dos lábios o sal dos mares que beijaram os vossos
Ter braços na vossa faina, partilhar das vossas tormentas
Chegar como vós, enfim, a extraordinários portos!
Fugir convosco à civilização!
Perder convosco a noção da moral!
Sentir mudar-se no longe a minha humanidade!
Beber convosco em mares do Sul
Novas selvajarias, novas balbúrdias da alma,
Novos fogos centrais no meu vulcânico espírito!
Ir convosco, despir de mim - ah! põe-te daqui pra fora! -
O meu traje de civilizado, a minha brandura de ações,
Meu medo inato das cadeias,
Minha pacífica vida,
A minha vida sentada, estática, regrada e revista!

No mar, no mar, no mar, no mar,
Eh! pôr no mar, ao vento, às vagas,
A minha vida!
Salgar de espuma arremessada pelos ventos
Meu paladar das grandes viagens.
Fustigar de água chicoteante as carnes da minha aventura,
Repassar de frios oceânicos os ossos da minha existência,
Flagelar, cortar, engelhar de ventos, de espumas, de sóis,
Meu ser ciclónico e atlântico,
Meus nervos postos como enxárcias,
Lira nas mãos dos ventos!

Sim, sim, sim... Crucificai-me nas navegações
E as minhas espáduas gozarão a minha cruz!
Atai-me às viagens como a postes
E a sensação dos postes entrará pela minha espinha
E eu passarei a senti-los num vasto espasmo passivo!
Fazei o que quiserdes de mim, logo que seja nos mares,
Sobre conveses, ao som de vagas,
Que me rasgueis, mateis, fira-os!
O que quero é levar pra Morte
Uma alma a transbordar de Mar,
Ébria a cair das coisas marítimas,
Tanto dos marujos como das âncoras, dos cabos,
Tanto das costas longínquas como do ruído dos ventos,
Tanto do Longe como do Cais, tanto dos naufrágios
Como dos tranqüilos comércios,
Tanto dos mastros como das vagas,
Levar pra Morte com dor, voluptuosamente,
Um copo cheio de sanguessugas, a sugar, a sugar,
De estranhas verdes absurdas sanguessugas marítimas!

Façam enxárcias das minhas veias!
Amarras dos meus músculos!
Atranquem-me a pele, preguem-na às quilhas.
E possa eu sentir a dor dos pregos e nunca deixar de sentir!
Façam do meu coração uma flâmula de almirante
Na hora de guerra aos velhos navios!
Calquem aos pés nos conveses meus olhos arrancados!
Quebrem-me os ossos de encontro às amuradas!
Fustiguem-me atado aos mastros, fustiguem-me!
A todos os ventos de todas as latitudes e longitudes
Derramem meu sangue sobre as águas arremessadas
Que atravessam o navio, o tombadilho, de lado a lado,
Nas vascas bravas das tormentas!

Ter a audácia ao vento dos panos das velas!
Ser, como as gáveas altas, o assobio dos ventos!
A velha guitarra do Fado dos mares cheios de perigos,
Canção para os navegadores ouvirem e não repetirem!

Os marinheiros que se sublevaram
Enforcaram o capitão numa verga.
Desembarcaram um outro numa ilha deserta.
Morooned!
O sol dos trópicos pôs a febre da pirataria antiga
Nas minhas veias intensivas.
Os ventos da Patagónia tatuaram a minha imaginação
De imagens trágicas e obscenas.
Fogo, fogo, fogo, dentro de mim!
Sangue! sangue! sangue! sangue!
Explode todo o meu cérebro!
Parte-se-me o mundo em vermelho!
Estoiram-me com o som de amarras as veias!
E estala em mim, feroz, voraz,
A canção do Grande Pirata,
A morte berrada do Grande Pirata a cantar
Até meter pavor plas espinhas dos seus homens abaixo.
Lá da ré a morrer, e a berrar, a cantar:

                                           Fifteen men on the Dead Man's Chest.
                                           Yo-ho ho and a bottle of rum I

E depois a gritar, numa voz já irreal, a estoirar no ar:
Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw!
Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw-aw-aw-aw!
Fetch a-a-aft th ru-u-u-u-u-u-u-u-u-um, Darby,

Eia,, que vida essa! essa era a vida, eia!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Eh-lahô-lahô-laFIO-Iahá-á-á-à-à!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!

Quilhas partidas, navios ao fundo, sangue nos mares
Conveses cheios de sangue, fragmentos de corpos!
Dedos decepados sobre amuradas!
Cabeças de crianças, aqui, acolá!
Gente de olhos fora, a gritar, a uivar!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Embrulho-me em tudo isto como uma capa no frio!
Roço-me por tudo isto como uma gata com cio por um muro!
Rujo como um leão faminto para tudo isto!
Arremeto como um toiro louco sobre tudo isto!
Cravo unhas, parto garras, sangro dos dentes sobre isto!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!

De repente estala-me sobre os ouvidos
Como um clarim a meu lado,
O velho grito, mas agora irado, metálico,
Chamando a presa que se avista,
A escuna que vai ser tomada:

Ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó - yyyy..
Schooner ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó - yyyy...

O mundo inteiro não existe para mim! Ardo vermelho!
Rujo na fúria da abordagem!
Pirata-mór! César-Pirata!
Pilho, mato, esfacelo, rasgo!
Só sinto o mar, a presa, o saque!
Só sinto em mim bater, baterem-me
As veias das minhas fontes!
Escorre sangue quente a minha sensação dos meus olhos!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!

Ah piratas, piratas, piratas!
Piratas, amai-me e odiai-me!
Misturai-me convosco, piratas!

Vossa fúria, vossa crueldade corno falam ao sangue
Dum corpo de mulher que foi meu outrora e cujo cio sobrevive!

Eu queria ser um bicho representativo de todos os vossos gestos,
Um bicho que cravasse dentes nas amuradas, nas quilhas
Que comesse mastros, bebesse sangue e alcatrão nos conveses,
Trincasse velas, remos, cordame e poleame,
Serpente do mar feminina e monstruosa cevando-se nos crimes!

E há uma sinfonia de sensações incompatíveis e análogas,
Há uma orquestrarão no meu sangue de balbúrdias de crimes,
De estrépitos espasmados de orgias de sangue nos mares,
Furlbundamente, como um vendaval de calor pelo espírito,
Nuvem de poeira quente anuviando a minha lucidez
E fazendo-me ver e sonhar isto tudo só com a pele e as veias!

Os piratas, a pirataria, os barcos, a hora,
Aquela hora marítima em que as presas são assaltadas,
E o terror dos apresados foge pra loucura - essa hora,
No seu total de crimes, terror, barcos, gente, mar, céu, nuvens,
Brisa, latitude, longitude, vozearia,
Queria eu que fosse em seu Todo meu corpo em seu Todo, sofrendo,
Que fosse meu corpo e meu sangue, compusesse meu ser em vermelho,
Florescesse como uma ferida comichando na carne irreal da minha alma!

Ah, ser tudo nos crimes! ser todos os elementos componentes
Dos assaltos aos barcos e das chacinas e das violações!
Ser quanto foi no lugar dos saques!
Ser quanto viveu ou jazeu no local das tragédias de sangue!
Ser o pirata-resumo de toda a pirataria no seu auge,
E a vítima-síntese, mas de carne e osso, de todos os piratas do mundo!
Ser o meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres
Que foram violadas, mortas, feridas, rasgadas pelos piratas!
Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser deles
E sentir tudo isso -- todas estas coisas duma só vez - pela espinha!

Ó meus peludos e rudes heróis da aventura e do crime!
Minhas marítimas feras, maridos da minha imaginação!
Amantes casuais da obliquidade das minhas sensações!
Queria ser Aquela que vos esperasse nos portos,
A vós, odiados amados do seu sangue de pirata nos sonhos!
Porque ela teria convosco, mas só em espírito, raivado
Sobre os cadáveres nus das vítimas que fazeis no mar!
Porque ela teria acompanhado vosso crime, e na orgia oceânica
Seu espírito de bruxa dançaria invisível em volta dos gestos
Dos vossos corpos, dos vossos cutelos, das vossas mãos estranguladores!
E ela em terra, esperando-vos, quando viésseis, se acaso viésseis,
Iria beber nos rugidos do vosso amor todo o vasto,
Todo o nevoento e sinistro perfume das vossas vitórias,
E através dos vossos espasmos silvaria um sabbat de vermelho e amarelo!

A carne rasgada, a carne aberta e estripada, o sangue correndo!
Agora, no auge conciso de sonhar o que vós fazíeis,
Perco-me todo de mim, já não vos pertenço, sou vós,
A minha feminilidade que vos acompanha é ser as vossas almas!
Estar por dentro de toda a vossa ferocidade, quando a praticáveis!
Sugar por dentro a vossa consciência das vossas sensações
Quando tingíeis de sangue os mares altos,
Quando de vez em quando atiráveis aos tubarões
Os corpos vivos ainda dos feridos, a carne rosada das crianças
E leváveis as mães às amuradas para verem o que lhes acontecia!

Estar convosco na carnagem, na pilhagem!
Estar orquestrado convosco na sinfonia dos saques!
Ah, não sei quê, não sei quanto queria eu ser de vós!
Não era só ser-vos a fêmea, ser-vos as fêmeas, ser-vos as vítimas,
Ser-vos as vítimas - homens, mulheres, crianças, navios -,
Não era só ser a hora e os barcos e as ondas,
Não era só ser vossas almas, vossos corpos, vossa fúria, vossa posse,
Não era só ser concretamente vosso ato abstrato de orgia,
Não era só isto que eu queria ser - era mais que isto o Deus-isto!
Era preciso ser Deus, o Deus dum culto ao contrário,
Um Deus monstruoso e satânico, um Deus dum panteísmo de sangue,
Para poder encher toda a medida da minha fúria imaginativa,
Para poder nunca esgotar os meus desejos de identidade
Com o cada, e o tudo, e o mais-que-tudo das vossas vitórias!

Ah, torturai-me para me curardes!
Minha carne - fazei dela o ar que os vossos cutelos atravessam
Antes de caírem sobre as cabeças e os ombros!
Minhas veias sejam os fatos que as facas trespassam!
Minha imaginação o corpo das mulheres que violais!
Minha inteligência o convés onde estais de pé matando!
Minha vida toda, no seu conjunto nervoso, histérico, absurdo,
O grande organismo de que cada ato de pirataria que se cometeu
Fosse uma célula consciente - e todo eu turbilhonasse
Como uma imensa podridão ondeando, e fosse aquilo tudo!

Com tal velocidade desmedida, pavorosa,
A máquina de febre das minhas visões transbordantes
Gira agora que a minha consciência, volante,
E apenas um nevoento círculo assobiando no ar.

Fifteen men on tbe Dead Man's Chest.
Yo-ho-ho and a bottle of rum!

Eh-lahô-lahô-laHO - lahá-á-ááá - ààà...

Ah! a selvajaria desta selvajaria! Merda
Pra toda a vida como a nossa, que não é nada disto!
Eu pr'àqui engenheiro, pratico à força, sensível a tudo,
Pr'àqui parado, em relação a vós, mesmo quando ando;
Mesmo quando ajo, inerte; mesmo quando me imponho, débil;
Estático, quebrado, dissidente cobarde da vossa Glória,
Da vossa grande dinâmica estridente, quente e sangrenta!

Arre! por não poder agir de acordo com o meu delírio!
Arre! por andar sempre agarrado às saias da civilização!
Por andar com a douceur des moeurs às costas, como um fardo de rendas!
Moços de esquina - todos nós o somos - do humanitarismo moderno!
Estupores de tísicos, de neurasténicos, de linfáticos,
Sem coragem para ser gente com violência e audácia,
Com a alma como uma galinha presa por uma perna!

Ah, os piratas! os piratas!.
A ânsia do ilegal unido ao feroz,
A ânsia das coisas absolutamente cruéis e abomináveis,
Que rói como um cio abstrato os nossos corpos franzimos,
Os nossos nervos femininos e delicados,
E põe grandes febres loucas nos nossos olhares vazios!

Obrigai-me a ajoelhar diante de vós!
Humilhai-me e batei-me!
Fazei de mim o vosso escravo e a vossa coisa!
E que o vosso desprezo por mim nunca me abandone,
Ó meus senhores! ó meus senhores!

Tomar sempre gloriosamente a parte submissa
Nos acontecimentos de sangue e nas sensualidades estiradas!
Desabai sobre mim, como grandes muros pesados,
Ó bárbaros do antigo mar!
Rasgai-me e feri-me!
De leste a oeste do meu corpo
Riscai de sangue a minha carne!
Beijai com cutelos de bordo e açoites e raiva
O meu alegre terror carnal de vos pertencer.
A minha ânsia masoquista em me dar à vossa fúria,
Em ser objeto inerte e sentiente da vossa omnívora crueldade,
Dominadores, senhores, imperadores, corcéis!
Ah, torturai-me,
Rasgai-me e abri-me!
Desfeito em pedaços conscientes
Entornai-me sobre os conveses,
Espalhai-me nos mares, deixai-me
Nas praias ávidas das ilhas!

Cevai sobre mim todo o meu misticismo de vós!
Cinzelai a sangue a minh'alma
Cortai, riscai!
Ó tatuadores da minha imaginação corpórea!
Esfoladores amados da minha cama submissão!
Submetei-me como quem mata um cão a pontapés!
Fazei de mim o poço para o vosso desprezo de domínio!
Fazei de mim as vossas vítimas todas!
Como Cristo sofreu por todos os homens, quero sofrer
Por todas as vossas vítimas às vossas mãos,
Às vossas mãos calosas, sangrentas e de dedos decepados
Nos assaltos bruscos de amuradas!

Fazei de mim qualquer, cousa como se eu fosse
Arrastado - ó prazer, o beijada dor! -
Arrastado à cauda de cavalos chicoteados por vós...
Mas isto no mar, isto no ma-a-a-ar, isto no MA-A-A-AR!
Eh-eh-eh-eh-eh! Eh--.h-eh-eh-eh-eh-eh! EH-EH-EHEH-EH-EH-EH! No MA-A-A-A-AR!

Yeh eh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eheh-eh-eh-eh-eh'
Grita tudo! tudo a gritar! ventos, vagas, barcos,
Marés, gáveas, piratas, a minha alma, o sangue, e o ar, e o ar!
Eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh! Tudo canta a gritar!

FIFTEEN MEN ON THE DEAD MAN'S CHEST.
YO-HO-HO AND A BOTTLE OF RUM!

Eh-eh eh-eh -eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eheh-eh! Eh eheh eh-eh-eh-eh!
Eh-lahô-lahô-laHO-O-O-ôô-lahá-á à - ààà!

AHÓ-Ó-Ó Ó Ó Ó-Ó Ó Ó Ó Ó - yyyj...
SCHOONER AHÓ-ó-ó-ó-ó-ó-ó-o-o-o - yyyy! ...

Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw-aw!
DA.RBY M'GRAW-AW AW-AW-AW-AW-AW!
FETCH A-A-AFT THE RU-U-U-U-U-UM, DARBY!

Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh eh-eh-eh!
EH-EH EH-EH-EH EH-EH EH-EH EH-EH-EH!
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH EH EH-EH!
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EFI-EH-EH-EH-EHI
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!

Parte-se em mim qualquer coisa. O vermelho anoiteceu.
Senti demais para poder continuar a sentir.
Esgotou-se-me a alma, ficou só um eco dentro de mim.
Decresce sensivelmente a velocidade do volante.
Tiram-me um pouco as mãos dos olhos os meus sonhos.
Dentro de mim há um só vácuo, um deserto, um mar noturno.
E logo que sinto que há um mar noturno dentro de mim,
Sabe dos longes dele, nasce do seu silêncio,
Outra vez, outra vez o vasto grito antiquíssimo.
De repente, como um relâmpago de som, que não faz barulho mas ternura,

Subitamente abrangendo todo o horizonte marítimo
Úmido e sombrio marulho humano noturno,
Voz de sereia longínqua chorando, chamando,
Vem do fundo do Longe, do fundo do Mar, da alma dos Abismos,
E à tona dele, como algas, bóiam meus sonhos desfeitos...

Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò - yy...
Schooner a Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò - yy...

Ah, o orvalho sobre a minha excitação!
O frescor noturno no meu oceano interior!
Eis tudo em mim de repente ante uma noite no mar
Cheia de enorme mistério humaníssimo das ondas noturnas
A lua sobe no horizonte
E a minha infância feliz acorda, como uma lágrima, em mim.
O meu passado ressurge, como se esse grito marítimo
Fosse um aroma, uma voz, o eco duma canção
Que fosse chamar ao meu passado
Por aquela felicidade que nunca mais tornarei a ter.

Era na velha casa sossegada ao pé do rio
(As janelas do meu quarto, e as da casa-de-jantar também,
Davam, por sobre umas casas baixas, para o rio próximo,
Para o Tejo, este mesmo Tejo, mas noutro ponto, mais abaixo
Se eu agora chegasse às mesmas janelas não chegava às mesmas janelas.
Aquele tempo passou como o fumo dum vapor no mar alto... )

Uma inexplicável ternura,
Um remorso comovido e lacrimoso,
Por todas aquelas vítimas - principalmente as crianças -
Que sonhei fazendo ao sonhar-me pirata antigo,
Emoção comovida, porque elas foram minhas vítimas;
Terna e suave, porque não o foram realmente;
Uma ternura confusa, como um vidro embaciado, azulada,
Canta velhas canções na minha pobre alma dolorida.

Ah, como pude eu pensar, sonhar aquelas coisas?
Que longe estou do que fui há uns momentos!
Histeria das sensações - ora estas, ora as opostas!
Na loura manhã que se ergue, como o meu ouvido só escolhe
As cousas de acordo com esta emoção - o marulho das águas.
O marulho leve das águas do rio de encontro ao cais....
A vela passando perto do outro lado do rio,
Os montes longínquos, dum azul japonês,
As casas de Almada,
E o que há de suavidade e de infância na hora matutina!...

Uma gaivota que passa,
E a minha ternura é maior.

Mas todo este tempo não estive a reparar para nada.
Tudo isto foi uma impressão só da pele, com uma carícia
Todo este tempo não tirei os olhos do meu sonho longínquo,
Da minha casa ao pé do rio,
Da minha infância ao pé do rio,
Das janelas do meu quarto dando para o rio de noite,
E a paz do luar esparso nas águas! ...

Minha velha tia, que me amava por causa do filho que perdeu...,
Minha velha tia costumava adormecer-me cantando-me
(Se bem que eu fosse já crescido demais para isso)...
Lembro-me e as lágrimas caem sobre o meu coração e lavam-no da vida,
E ergue-me uma leve brisa marítima dentro de mim.
As vezes ela cantava a "Nau Catrineta":

                                        Lá vai a Nau Catrineta
                                        Por sobre as águas do mar ...

E outras vezes, numa melodia muito saudosa e tão medieval,
Era a "Bela Infanta"... Relembro, e a pobre velha voz ergue-se dentro de mim
E lembra-me que pouco me lembrei dela depois, e ela amava-me tanto!
Como fui ingrato para ela - e afinal que fiz eu da vida?
Era a "Bela Infanta"... Eu fechava os olhos, e ela cantava:

                                        Estando a Bela Infanta
                                        No seu Jardim assentada...

Eu abria um pouco os olhos e via a janela cheia de luar
E depois fechava os olhos outra vez, e em tudo isto era feliz.

                                        Estando a Bela Infanta
                                        No seu jardim assentada,
                                        Seu pente de ouro na mão,
                                        Seus cabelos penteava

Ó meu passado de infância, boneco que me partiram!
Não poder viajar pra o passado, para aquela casa e aquela afeição,
E ficar lá sempre, sempre criança e sempre contente!

Mas tudo isto foi o Passado, lanterna a uma esquina de rua velha.
Pensar isto faz frio, faz fome duma cousa que se não pode obter.
Dá-me não sei que remorso absurdo pensar nisto.
Oh turbilhão lento de sensações desencontradas!
Vertigem tênue de confusas coisas na alma!
Fúrias partidas, ternuras como carrinhos de linha com que as crianças brincam,
Grandes desabamentos de imaginação sobre os olhos dos sentidos,
Lágrimas, lágrimas inúteis,
Leves brisas de contradição roçando pela face a alma...

Evoco, por um esforço voluntário, para sair desta emoção,
Evoco, com um esforço desesperado, seco, nulo,
A canção do Grande Pirata, quando estava a morrer:

                                        Fifteen men on the Dead Man's Chest.
                                        Yo-ho-ho and a bottle of rum!

Mas a canção é uma linha reta mal traçada dentro de mim...
Esforço-me e consigo chamar outra vez ante os meus olhos na alma,
Outra vez, mas através duma imaginação quase literária,
A fúria da pirataria, da chacina, o apetite, quase do paladar, do saque,
Da chacina inútil de mulheres e de crianças,
Da tortura fútil, e só para nos distrairmos, dos passageiros pobres
E a sensualidade de escangalhar e partir as coisas mais queridas dos outros,
Mas sonho isto tudo com um medo de qualquer coisa a respirar-me sobre a nuca.

Lembro-me de que seria interessante
Enforcar os filhos à vista das mães
(Mas sinto-me sem querer as mães deles),
Enterrar vivas nas ilhas desertas as crianças de quatro anos
Levando os pais em barcos até lá para verem
(Mas estremeço, lembrando-me dum filho que não tenho
e está dormindo tranquilo em casa).

Aguilhoo uma ânsia fria dos crimes marítimos,
Duma inquisição sem a desculpa da Fé,
Crimes nem sequer com razão de ser de maldade e de fúria,
Feitos a frio, nem sequer para ferir, nem sequer para fazer mal,
Nem sequer para nos divertirmos, mas apenas para passar o tempo,
Como quem faz paciências a uma mesa de jantar de província com a toalha
Atirada pra o outro lado da mesa depois de jantar,
Só pelo suave gosto de cometer crimes abomináveis e não os achar grande coisa,
De ver sofrer até ao ponto da loucura e da morte-pela-dor mas nunca deixar chegar lá...
Mas a minha imaginação recusa-se a acompanhar-me.
Um calafrio arrepia-me.
E de repente, mais de repente do que da outra vez, de mais longe, de mais fundo,
De repente - oh pavor por todas as minhas veias! -,
Oh frio repentino da porta para o Mistério
que se abriu dentro de mim e deixou entrar uma corrente de ar!
Lembro-me de Deus, do Transcendental da vida, e de repente
A velha voz do marinheiro inglês Jim Barris com quem eu falava,
Tornada voz das ternuras misteriosas dentro de mim,
das pequenas coisas de regaço de mãe e de fita de cabelo de irmã,
Mas estupendamente vinda de além da aparência das coisas,
A Voz surda e remota tornada A Voz Absoluta, a Voz Sem Boca,
Vinda de sobre e de dentro da solidão noturna dos mares,
Chama por mim, chama por mim, chama por mim ...

Vem surdamente, como se fosse suprimida e se ouvisse,
Longinquamente, como se estivesse soando noutro lugar e aqui não se pudesse ouvir,
Como um soluço abafado, uma luz que se apaga, um hálito silencioso.
De nenhum lado do espaço, de nenhum local no tempo,

O grito eterno e noturno, o sopro fundo e confuso:

Ahô-ô-õ-õ-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô - yyy......
Ahô-ô-õ-õ-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô - yyy......
Schooner ah-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô ô - - yy.....

Tremo com frio da alma repassando-me o corpo
E abro de repente os olhos, que não tinha fechado.
Ah, que alegria a de sair dos sonhos de vez!
Eis outra vez o mundo real, tão bondoso para os nervos!
Ei-lo a esta hora matutina em que entram os paquetes que chegam cedo.

Já não me importa o paquete que entrava. Ainda está longe.
Só o que está perto agora me lava a alma.
A minha imaginação higiénica, forte, pratica,
Preocupa-se agora apenas com as coisas modernas e úteis,
Com os navios de carga, com os paquetes e os passageiros,
Com as fortes coisas imediatas, modernas, comerciais, verdadeiras.
Abranda o seu giro dentro de mim o volante.

Maravilhosa vida marítima moderna,
Toda limpeza, máquinas e saúde!
Tudo tão bem arranjado, tão espontaneamente ajustado,
Todas as peças das máquinas, todos os navios pelos mares,
Todos os elementos da atividade comercial de exportação e importação
Tão maravilhosamente combinando-se
Que corre tudo como se fosse por leis naturais,
Nenhuma coisa esbarrando com outra!

Nada perdeu a poesia. E agora há a mais as máquinas
Com a sua poesia também, e todo o novo género de vida
Comercial, mundana, intelectual, sentimental,
Que a era das máquinas veio trazer para as almas.
As viagens agora são tão belas como eram dantes
E um navio será sempre belo, só porque é um navio.
Viajar ainda é viajar e o longe está sempre onde esteve
Em parte nenhuma, graças a Deus!

Os portos cheios de vapores de muitas espécies!
Pequenos, grandes, de várias cores, com várias disposições de vigias,
De tão deliciosamente tantas companhias de navegação!
Vapores nos portos, tão individuais na separação destacada dos ancoramentos!
Tão prazenteiro o seu garbo quieto de cousas comerciais que andam no mar,
No velho mar sempre o homérico, ó Ulisses!

O olhar humanitário dos faróis na distância da noite,
Ou o súbito farol próximo na noite muito escura
("Que perto da terra que estávamos passando!"
E o som da água canta-nos ao ouvido)! ...

Tudo isto hoje é como sempre foi, mas há o comércio;
E o destino comercial dos grandes vapores
Envaidece-me da minha época!
A mistura de gente a bordo dos navios de passageiros
Dá-me o orgulho moderno de viver numa época onde é tão fácil
Misturarem-se as raças, transporem-se os espaços, ver com facilidade todas as coisas,
E gozar a vida realizando um grande número de sonhos.

Limpos, regulares, modernos como um escritório com guichets em redes de arame amarelo!
Meus sentimentos agora, naturais e comedidos como , gentlemen,
São práticos, longe de desvairamentos, enchem de ar marítimo os pulmões,
Como gente perfeitamente consciente de como é higiénico respirar o ar do mar.

O dia é perfeitamente já de horas de trabalho.
Começa tudo a movimentar-se, a regularizar-se.

Com um grande prazer natural e direto percorro a alma
Todas as operações comerciais necessárias a um embarque de mercadorias.
A minha época é o carimbo que levam todas as faturas
E sinto que todas as cartas de todos os escritórios
Deviam ser endereçadas a mim.

Um conhecimento de bordo tem tanta individualidade,
E uma assinatura de comandante de navio é tão bela e moderna!
Rigor comercial do princípio e do fim das cartas:
Dear Sirs - Messieurs - Amigos e Srs.,
Yours faithfully - ...nos salutations empressées...
Tudo isto não é só humano e limpo, mas também belo,
E tem ao fim um destino marítimo, um vapor onde embarquem
As mercadorias de que as cartas e as faturas tratam.

Complexidade da vida! As faturas são feitas por gente
Que tem amores, ódios, paixões políticas, às vezes crimes -
E são tão bem escritas, tão alinhadas, tão independentes de tudo isso!
Há quem olhe para uma fatura e não sinta isto.
Com certeza que tu, Cesário Verde, o sentias.
Eu é até às lágrimas que o sinto humanissimamente.
Venham dizer-me que não há poesia no comércio, nos escritórios!
Ora, ela entra por todos os poros... Neste ar marítimo respiro-a,
Por tudo isto vem a propósito dos vapores, da navegação moderna,
Porque as faturas e as cartas comerciais são o princípio da história
E os navios que levam as mercadorias pelo mar eterno são o fim.

Ah, e as viagens, as viagens de recreio, e as outras,
As viagens por mar, onde todos somos companheiros dos outros
Duma maneira especial, como se um mistério marítimo
Nos aproximasse as almas e nos tornasse um momento
Patriotas transitórios duma mesma pátria incerta,
Eternamente deslocando-se sobre a imensidade das água,,
Grandes hotéis do Infinito, oh transatlânticos meus!

Com o cosmopolitismo perfeito e total de nunca pararem num ponto
E conterem todas as espécies de trajes, de caras, de raças!

As viagens, os viajantes - tantas espécies deles!
Tanta nacionalidade sobre o mundo! tanta profissão! tanta gente!
Tanto destino diverso que se pode dar à vida,
À vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma!
Tantas caras curiosas! Todas as caras são curiosas
E nada traz tanta religiosidade como olhar muito para gente.
A fraternidade afinal não é uma idéia revolucionária.
É uma coisa que a gente aprende pela vida fora, onde tem que tolerar tudo,
E passa a achar graça ao que tem que tolerar,
E acaba quase a chorar de ternura sobre o que tolerou!

Ah, tudo isto é belo, tudo isto é humano e anda ligado
Aos sentimentos humanos, tão conviventes e burgueses.
Tão complicadamente simples, tão metafisicamente tristes!
A vida flutuante, diversa, acaba por nos educar no humano.
Pobre gente! pobre gente toda a gente!

Despeço-me desta hora no corpo deste outro navio
Que vai agora saindo. É um tramp-steamer inglês,
Muito sujo, como se fosse um navio francês,
Com um ar simpático de proletário dos mares,
E sem dúvida anunciado ontem na última página das gazetas.

Enternece-me o pobre vapor, tão humilde vai ele e tão natural.
Parece ter um certo escrúpulo não sei em quê, ser pessoa honesta,
Curnpridora duma qualquer espécie de deveres.
Lá vai ele deixando o lugar defronte do cais onde estou.
Lá vai ele tranquilamente, passando por onde as naus estiveram
Outrora, outrora...
Para Cardiff? Para Liverpool? Para Londres? Não tem importância.
Ele faz o seu dever. Assim façamos nós o nosso. Bela vida!
Boa viagem! Boa viagem!
Boa viagem, meu pobre amigo casual, que me fizeste o favor
De levar contigo a febre e a tristeza dos meus sonhos,
E restituir-me à vida para olhar para ti e te ver passar.
Boa viagem! Boa viagem! A vida é isto...

Que aprumo tão natural, tão inevitavelmente matutino
Na tua saída do porto de Lisboa, hoje!
Tenho-te uma afeição curiosa e grata por isso...
Por isso quê? Sei lá o que é!... Vai... Passa...
Com um ligeiro estremecimento,
(T-t--t --- r ---- t----- r ... )
O volante dentro de mim pára.

Passa, lento vapor, passa e não fiques...
Passa de mim, passa da minha vista,
Vai-te de dentro do meu coração,
Perde-te no Longe, no Longe, bruma de Deus,
Perde-te, segue o teu destino e deixa-me...
Eu quem sou para que chore e interrogue?
Eu quem sou para que te fale e te ame?
Eu quem sou para que me perturbe ver-te?
Larga do cais, cresce o sol, ergue-se ouro,
Luzem os telhados dos edifícios do cais,
Todo o lado de cá da cidade brilha...
Parte, deixa-me, torna-te
Primeiro o navio a meio do rio, destacado e nítido,
Depois o navio a caminho da barra, pequeno e preto
Depois ponto vago no horizonte (ó minha angústia!),
Ponto cada vez mais vago no horizonte....
Nada depois, e só eu e a minha tristeza,
E a grande cidade agora cheia de sol
E a hora real e nua como um cais já sem navios,
E o giro lento do guindaste que, como um compasso que gira,
Traça um semicírculo de não sei que emoção
No silêncio comovido da minh'alma...

Álvaro de Campos

Breve Análise

Na Ode Marítima, exterior e interior são separados pela mesma “Distância” que vai do poeta no cais deserto ao navio que ele vê ao longe. É a distância entre a sensação e a coisa, entre a sensação como realidade interior e o paquete como realidade exterior. Ora, esta distância liga-se a uma sensação “primitiva”, como diz Pessoa, sensação que desempenha um papel essencial em toda a sua poesia: a sensação de mistério. Na Ode Marítima, o mistério é significado por toda a distância, tudo o que se separa, todo o movimento que cria uma separação.
Com efeito, todo o poema pode ser encarado nesta perspetiva: como vencer a Distância, ou seja, todas as distâncias de todas as naturezas que surgem, uma após outra (entre o paquete e o cais, entre eu-agora e eu-outrora, entre um cais e O Cais, etc.); mas também, e porque é esse o verdadeiro fundamento de toda a distância — como fazer desaparecer a oposição entre os dois pólos da sensação, o interior e o exterior.


Ultimatum 


Mandato de despejo aos mandarins do mundo

 Fora tu,
 reles
 esnobe
 plebeu
 E fora tu, imperialista das sucatas
 Charlatão da sinceridade
 e tu, da juba socialista, e tu, qualquer outro
 Ultimatum a todos eles
 E a todos que sejam como eles
 Todos!

 Monte de tijolos com pretensões a casa
 Inútil luxo, megalomania triunfante
 E tu, Brasil, blague de Pedro Álvares Cabral
 Que nem te queria descobrir
 
 Ultimatum a vós que confundis o humano com o popular
 Que confundis tudo
 Vós, anarquistas deveras sinceros
 Socialistas a invocar a sua qualidade de trabalhadores
 Para quererem deixar de trabalhar
 Sim, todos vós que representais o mundo
 Homens altos
 Passai por baixo do meu desprezo
 Passai aristocratas de tanga de ouro
 Passai Frouxos
 Passai radicais do pouco
 Quem acredita neles?
 Mandem tudo isso para casa
 Descascar batatas simbólicas

 Fechem-me tudo isso a chave
 E deitem a chave fora
 Sufoco de ter só isso a minha volta
 Deixem-me respirar
 Abram todas as janelas
 Abram mais janelas
 Do que todas as janelas que há no mundo

 Nenhuma idéia grande
 Nenhuma corrente política
 Que soe a uma idéia grão
 E o mundo quer a inteligência nova
 A sensibilidade nova
O mundo tem sede de que se crie
 Porque aí está apodrecer a vida
 Quando muito é estrume para o futuro
 O que aí está não pode durar
 Porque não é nada

 Eu da raça dos navegadores
 Afirmo que não pode durar
 Eu da raça dos descobridores
 Desprezo o que seja menos
 Que descobrir um novo mundo
 Proclamo isso bem alto
 Braços erguidos
 Fitando o Atlântico

 E saudando abstractamente o infinito.

Álvaro de Campos



Ultimatum, de Álvaro de Campos, foi publicado no primeiro e (pelo menos até à data) único número de Portugal Futurista, publicação literária cuja natureza vem suficientemente expressa no título, que não carece de tradução.

Tendo escapado à censura por qualquer inexplicável golpe de sorte, esta desapareceu quando alguém chamou para Ultimatum a atenção das autoridades já depois de a revista se encontrar nos escaparates das livrarias. Portugal Futurista foi imediatamente apreendido pela Polícia e instaurado processo contra todos os escritores que colaboraram. Passou-se isto (cumpre explicar) durante o ministério democrático derrubado por Sidónio Pais na revolução de 5 de Dezembro de 1917. No entanto, é difícil imaginar como qualquer ministério, estando o país em guerra, poderia consentir na publicação de Ultimatum, que, original e magnífico como é, embora não germanófilo (pois é «anti» tudo, Aliados e alemães), contém insultos contundentes contra os Aliados, e bem assim contra Portugal e o Brasil, os próprios países aos quais, sem dúvida, «P. F.» se destinava.


PASSAGEM DAS HORAS


Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.

A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde,
O coral das Maldivas em passagem cálida,
Macau à uma hora da noite... Acordo de repente...
Yat-lô--ô-ôôô-ô-ô-ô-ô-ô-ô...Ghi-...
E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade...
A estatura norte-africana quase de Zanzibar ao sol...
Dar-es-Salaam (a saída é difícil)...
Majunga, Nossi-Bé, verduras de Madagascar...
Tempestades em torno ao Guardafui...
E o Cabo da Boa Esperança nítido ao sol da madrugada...
E a Cidade do Cabo com a Montanha da Mesa ao fundo...

Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.

A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me,
Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,
Desta entrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso,
Desta turbulência tranqüila de sensações desencontradas,
Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada,
Deste desassossego no fundo de todos os cálices,
Desta angústia no fundo de todos os prazeres,
Desta sociedade antecipada na asa de todas as chávenas,
Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias.

Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,
Consangüinidade com o mistério das coisas, choque
Aos contatos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,
Ou se há outra significação para isto mais cômoda e feliz.

Seja o que for, era melhor não ter nascido,
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,
Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,
E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,
Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.

Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços,
É preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas...
Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro,
Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca...
Que há de ser de mim? Que há de ser de mim?

Correram o bobo a chicote do palácio, sem razão,
Fizeram o mendigo levantar-se do degrau onde caíra.
Bateram na criança abandonada e tiraram-lhe o pão das mãos.
Oh mágoa imensa do mundo, o que falta é agir...
Tão decadente, tão decadente, tão decadente...
Só estou bem quando ouço música, e nem então.
Jardins do século dezoito antes de 89,
Onde estais vós, que eu quero chorar de qualquer maneira?

Como um bálsamo que não consola senão pela idéia de que é um bálsamo,
A tarde de hoje e de todos os dias pouco a pouco, monótona, cai.

Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui-se.
Seja de que maneira for, é preciso continuar a viver.
Arde-me a alma como se fosse uma mão, fisicamente.
Estou no caminho de todos e esbarram comigo.
Minha quinta na província,
Haver menos que um comboio, uma diligência e a decisão de partir entre mim e ti.
Assim fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir,
E fica sempre, fica sempre, fica sempre,
Até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica...

Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.
Só humanitariamente é que se pode viver.
Só amando os homens, as ações, a banalidade dos trabalhos,
Só assim - ai de mim! -, só assim se pode viver.
Só assim, o noite, e eu nunca poderei ser assim!

Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,
Mas tudo ou sobrou ou foi pouco - não sei qual - e eu sofri.
Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos,
E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse.
Amei e odiei como toda gente,
Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,
E para mim foi sempre a exceção, o choque, a válvula, o espasmo.

Vem, ó noite, e apaga-me, vem e afoga-me em ti.
Ó carinhosa do Além, senhora do luto infinito,
Mágoa externa na Terra, choro silencioso do Mundo.
Mãe suave e antiga das emoções sem gesto,
Irmã mais velha, virgem e triste, das idéias sem nexo,
Noiva esperando sempre os nossos propósitos incompletos,
A direção constantemente abandonada do nosso destino,
A nossa incerteza pagã sem alegria,
A nossa fraqueza cristã sem fé,
O nosso budismo inerte, sem amor pelas coisas nem êxtases,
A nossa febre, a nossa palidez, a nossa impaciência de fracos,
A nossa vida, o mãe, a nossa perdida vida...

Não sei sentir, não sei ser humano, conviver
De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra.
Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser quotidiano, nítido,
Ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens,
Ter uma obra, uma força, uma vontade, uma horta,
Unia razão para descansar, uma necessidade de me distrair,
Uma cousa vinda diretamente da natureza para mim.

Por isso sê para mim materna, ó noite tranqüila...
Tu, que tiras o mundo ao mundo, tu que és a paz,
Tu que não existes, que és só a ausência da luz,
Tu que não és uma coisa, rim lugar, uma essência, uma vida,
Penélope da teia, amanhã desfeita, da tua escuridão,
Circe irreal dos febris, dos angustiados sem causa,
Vem para mim, ó noite, estende para mim as mãos,
E sê frescor e alívio, o noite, sobre a minha fronte...
'Tu, cuja vinda é tão suave que parece um afastamento,
Cujo fluxo e refluxo de treva, quando a lua bafeja,
Tem ondas de carinho morto, frio de mares de sonho,
Brisas de paisagens supostas para a nossa angústia excessiva...
Tu, palidamente, tu, flébil, tu, liquidamente,
Aroma de morte entre flores, hálito de febre sobre margens,
Tu, rainha, tu, castelã, tu, dona pálida, vem...

Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.

Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,
Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,
Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia,
Seja uma flor ou uma idéia abstrata,
Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus.
E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.
São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores,
E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também,
Porque ser inferior é diferente de ser superior,
E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão.
Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de caráter,
E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades,
E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles,
E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens.
Sim, como sou rei absoluto na minha simpatia,
Basta que ela exista para que tenha razão de ser.
Estreito ao meu peito arfante, num abraço comovido,
(No mesmo abraço comovido)
O homem que dá a camisa ao pobre que desconhece,
O soldado que morre pela pátria sem saber o que é pátria,
E o matricida, o fratricida, o incestuoso, o violador de crianças,
O ladrão de estradas, o salteador dos mares,
O gatuno de carteiras, a sombra que espera nas vielas —
Todos são a minha amante predileta pelo menos um momento na vida.

Beijo na boca todas as prostitutas,
Beijo sobre os olhos todos os souteneurs,
A minha passividade jaz aos pés de todos os assassinos
E a minha capa à espanhola esconde a retirada a todos os ladrões.
Tudo é a razão de ser da minha vida.

Cometi todos os crimes,
Vivi dentro de todos os crimes
(Eu próprio fui, não um nem o outro no vicio,
Mas o próprio vício-pessoa praticado entre eles,
E dessas são as horas mais arco-de-triunfo da minha vida).

Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me, entreguei-rne,
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.

Os braços de todos os atletas apertaram-me subitamente feminino,
E eu só de pensar nisso desmaiei entre músculos supostos.

Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros,
Acenaram no meu coração os lenços de todas as despedidas,
Todos os chamamentos obscenos de gesto e olhares
Batem-me em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais.
Fui todos os ascetas, todos os postos-de-parte, todos os como que esquecidos,
E todos os pederastas - absolutamente todos (não faltou nenhum).
Rendez-vous a vermelho e negro no fundo-inferno da minha alma!

(Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te,
Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas tu foste para mim!)
Mary, com quem eu lia Burns em dias tristes como sentir-se viver,
Mary, mal tu sabes quantos casais honestos, quantas famílias felizes,
Viveram em ti os meus olhos e o meu braço cingido e a minha consciência incerta,
A sua vida pacata, as suas casas suburbanas com jardim,
Os seus half-holidays inesperados...
Mary, eu sou infeliz...
Freddie, eu sou infeliz...
Oh, vós todos, todos vós, casuais, demorados,
Quantas vezes tereis pensado em pensar em mim, sem que o fósseis,
Ah, quão pouco eu fui no que sois, quão pouco, quão pouco —
Sim, e o que tenho eu sido, o meu subjetivo universo,
Ó meu sol, meu luar, minhas estrelas, meu momento,
Ó parte externa de mim perdida em labirintos de Deus!

Passa tudo, todas as coisas num desfile por mim dentro,
E todas as cidades do mundo, rumorejam-se dentro de mim ...
Meu coração tribunal, meu coração mercado,
Meu coração sala da Bolsa, meu coração balcão de Banco,
Meu coração rendez-vous de toda a humanidade,
Meu coração banco de jardim público, hospedaria,
Estalagem, calabouço número qualquer cousa
(Aqui estuvo el Manolo en vísperas de ir al patíbulo)
Meu coração clube, sala, platéia, capacho, guichet, portaló,
Ponte, cancela, excursão, marcha, viagem, leilão, feira, arraial,
Meu coração postigo,
Meu coração encomenda,
Meu coração carta, bagagem, satisfação, entrega,
Meu coração a margem, o lirrite, a súmula, o índice,
Eh-lá, eh-lá, eh-lá, bazar o meu coração.

Todos os amantes beijaram-se na minh'alma,
Todos os vadios dormiram um momento em cima de mim,
Todos os desprezados encostaram-se um momento ao meu ombro,
Atravessaram a rua, ao meu braço, todos os velhos e os doentes,
E houve um segredo que me disseram todos os assassinos.

(Aquela cujo sorriso sugere a paz que eu não tenho,
Em cujo baixar-de-olhos há uma paisagem da Holanda,
Com as cabeças femininas coiffées de lin
E todo o esforço quotidiano de um povo pacífico e limpo...
Aquela que é o anel deixado em cima da cômoda,
E a fita entalada com o fechar da gaveta,
Fita cor-de-rosa, não gosto da cor mas da fita entalada,
Assim como não gosto da vida, mas gosto de senti-la ...

Dormir como um cão corrido no caminho, ao sol,
Definitivamente para todo o resto do Universo,
E que os carros me passem por cima.)

Fui para a cama com todos os sentimentos,
Fui souteneur de todas ás emoções,
Pagaram-me bebidas todos os acasos das sensações,
Troquei olhares com todos os motivos de agir,
Estive mão em mão com todos os impulsos para partir,
Febre imensa das horas!
Angústia da forja das emoções!
Raiva, espuma, a imensidão que não cabe no meu lenço,
A cadela a uivar de noite,
O tanque da quinta a passear à roda da minha insônia,
O bosque como foi à tarde, quando lá passeamos, a rosa,
A madeixa indiferente, o musgo, os pinheiros,
Toda a raiva de não conter isto tudo, de não deter isto tudo,
Ó fome abstrata das coisas, cio impotente dos momentos,
Orgia intelectual de sentir a vida!

Obter tudo por suficiência divina —
As vésperas, os consentimentos, os avisos,
As cousas belas da vida —
O talento, a virtude, a impunidade,
A tendência para acompanhar os outros a casa,
A situação de passageiro,
A conveniência em embarcar já para ter lugar,
E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, urna frase,
E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa.

Poder rir, rir, rir despejadamente,
Rir como um copo entornado,
Absolutamente doido só por sentir,
Absolutamente roto por me roçar contra as coisas,
Ferido na boca por morder coisas,
Com as unhas em sangue por me agarrar a coisas,
E depois dêem-me a cela que quiserem que eu me lembrarei da vida.

Sentir tudo de todas as maneiras,
Ter todas as opiniões,
Ser sincero contradizendo-se a cada minuto,
Desagradar a si próprio pela plena liberalidade de espírito,
E amar as coisas como Deus.

Eu, que sou mais irmão de uma árvore que de um operário,
Eu, que sinto mais a dor suposta do mar ao bater na praia
Que a dor real das crianças em quem batem
(Ah, como isto deve ser falso, pobres crianças em quem batem —
E por que é que as minhas sensações se revezam tão depressa?)
Eu, enfim, que sou um diálogo continuo,
Um falar-alto incompreensível, alta-noite na torre,
Quando os sinos oscilam vagamente sem que mão lhes toque
E faz pena saber que há vida que viver amanhã.
Eu, enfim, literalmente eu,
E eu metaforicamente também,
Eu, o poeta sensacionista, enviado do Acaso
As leis irrepreensíveis da Vida,
Eu, o fumador de cigarros por profissão adequada,
O indivíduo que fuma ópio, que toma absinto, mas que, enfim,
Prefere pensar em fumar ópio a fumá-lo
E acha mais seu olhar para o absinto a beber que bebê-lo...
Eu, este degenerado superior sem arquivos na alma,
Sem personalidade com valor declarado,
Eu, o investigador solene das coisas fúteis,
Que era capaz de ir viver na Sibéria só por embirrar com isso,
E que acho que não faz mal não ligar importâricia à pátria
Porqtie não tenho raiz, como uma árvore, e portanto não tenho raiz
Eu, que tantas vezes me sinto tão real como uma metáfora,

Como uma frase escrita por um doente no livro da rapariga que encontrou no terraço,
Ou uma partida de xadrez no convés dum transatlântico,
Eu, a ama que empurra os perambulators em todos os jardins públicos,
Eu, o policia que a olha, parado para trás na álea,
Eu, a criança no carro, que acena à sua inconsciência lúcida com um coral com guizos.
Eu, a paisagem por detrás disto tudo, a paz citadina
Coada através das árvores do jardim público,
Eu, o que os espera a todos em casa,
Eu, o que eles encontram na rua,
Eu, o que eles não sabem de si próprios,
Eu, aquela coisa em que estás pensando e te marca esse sorriso,
Eu, o contraditório, o fictício, o aranzel, a espuma,
O cartaz posto agora, as ancas da francesa, o olhar do padre,
O largo onde se encontram as suas ruas e os chauffeurs dormem contra os carros,
A cicatriz do sargento mal encarado,
O sebo na gola do explicador doente que volta para casa,
A chávena que era por onde o pequenito que morreu bebia sempre,
E tem uma falha na asa (e tudo isto cabe num coração de mãe e enche-o)...
Eu, o ditado de francês da pequenita que mexe nas ligas,
Eu, os pés que se tocam por baixo do bridge sob o lustre,
Eu, a carta escondida, o calor do lenço, a sacada com a janela entreaberta,
O portão de serviço onde a criada fala com os desejos do primo,
O sacana do José que prometeu vir e não veio
E a gente tinha uma partida para lhe fazer...
Eu, tudo isto, e além disto o resto do mundo...
Tanta coisa, as portas que se abrem, e a razão por que elas se abrem,
E as coisas que já fizeram as mãos que abrem as portas...
Eu, a infelicidade-nata de todas as expressões,
A impossibilidade de exprimir todos os sentimentos,
Sem que haja uma lápida no cemitério para o irmão de tudo isto,
E o que parece não querer dizer nada sempre quer dizer qualquer cousa...

Sim, eu, o engenheiro naval que sou supersticioso como uma camponesa madrinha,
E uso monóculo para não parecer igual à idéia real que faço de mim,
Que levo às vezes três horas a vestir-me e nem por isso acho isso natural,
Mas acho-o metafísico e se me batem à porta zango-me,
Não tanto por me interromperem a gravata como por ficar sabendo que há a vida...
Sim, enfim, eu o destinatário das cartas lacradas,
O baú das iniciais gastas,
A entonação das vozes que nunca ouviremos mais -
Deus guarda isso tudo no Mistério, e às vezes sentimo-lo
E a vida pesa de repente e faz muito frio mais perto que o corpo.
A Brígida prima da minha tia,
O general em que elas falavam - general quando elas eram pequenas,
E a vida era guerra civil a todas as esquinas...
Vive le mélodrame oú Margot a pleuré!
Caem as folhas secas no chão irregularmente,
Mas o fato é que sempre é outono no outono,
E o inverno vem depois fatalmente,
há só um caminho para a vida, que é a vida...

Esse velho insignificante, mas que ainda conheceu os românticos,
Esse opúsculo político do tempo das revoluções constitucionais,
E a dor que tudo isso deixa, sem que se saiba a razão
Nem haja para chorar tudo mais razão que senti-lo.

Viro todos os dias todas as esquinas de todas as ruas,
E sempre que estou pensando numa coisa, estou pensando noutra.
Não me subordino senão por atavisnio,
E há sempre razões para emigrar para quem não está de cama.

Das serrasses de todos os cafés de todas as cidades
Acessíveis à imaginação
Reparo para a vida que passa, sigo-a sem me mexer,
Pertenço-lhe sem tirar um gesto da algibeira,
Nem tomar nota do que vi para depois fingir que o vi.

No automóvel amarelo a mulher definitiva de alguém passa,
Vou ao lado dela sem ela saber.
No trottoir imediato eles encontram-se por um acaso combinado,
Mas antes de o encontro deles lá estar já eu estava com eles lá.
Não há maneira de se esquivarem a encontrar-me,
Não há modo de eu não estar em toda a parte.
O meu privilégio é tudo
(Brevetée, Sans Garantie de Dieu, a minh'Alma).

Assisto a tudo e definitivamente.
Não há jóia para mulher que não seja comprada por mim e para mim,
Não há intenção de estar esperando que não seja minha de qualquer maneira,
Não há resultado de conversa que não seja meu por acaso,
Não há toque de sino em Lisboa há trinta anos, noite de S. Carlos há cinqüenta
Que não seja para mim por uma galantaria deposta.

Fui educado pela Imaginação,
Viajei pela mão dela sempre,
Amei, odiei, falei, pensei sempre por isso,
E todos os dias têm essa janela por diante,
E todas as horas parecem minhas dessa maneira.

Cavalgada explosiva, explodida, como uma bomba que rebenta,
Cavalgada rebentando para todos os lados ao mesmo tempo,
Cavalgada por cima do espaço, salto por cima do tempo,
Galga, cavalo eléctron-íon, sistema solar resumido
Por dentro da ação dos êmbolos, por fora do giro dos volantes.
Dentro dos êmbolos, tornado velocidade abstrata e louca,
Ajo a ferro e velocidade, vaivém, loucura, raiva contida,
Atado ao rasto de todos os volantes giro assombrosas horas,
E todo o universo range, estraleja e estropia-se em mim.

Ho-ho-ho-ho-ho!...
Cada vez mais depressa, cada vez mais com o espírito adiante do corpo
Adiante da própria idéia veloz do corpo projetado,
Com o espírito atrás adiante do corpo, sombra, chispa,
He-la-ho-ho ... Helahoho ...

Toda a energia é a mesma e toda a natureza é o mesmo...
A seiva da seiva das árvores é a mesma energia que mexe
As rodas da locomotiva, as rodas do elétrico, os volantes dos Diesel,
E um carro puxado a mulas ou a gasolina é puxado pela mesma coisa.

Raiva panteísta de sentir em mim formidandamente,
Com todos os meus sentidos em ebulição, com todos os meus poros em fumo,
Que tudo é uma só velocidade, uma só energia, uma só divina linha
De si para si, parada a ciciar violências de velocidade louca...
Ho ----

Ave, salve, viva a unidade veloz de tudo!
Ave, salve, viva a igualdade de tudo em seta!
Ave, salve, viva a grande máquina universo!
Ave, que sois o mesmo, árvores, máquinas, leis!
Ave, que sois o mesmo, vermes, êmbolos, idéias abstratas,
A mesma seiva vos enche, a mesma seiva vos torna,
A mesma coisa sois, e o resto é por fora e falso,
O resto, o estático resto que fica nos olhos que param,
Mas não nos meus nervos motor de explosão a óleos pesados ou leves,
Não nos meus nervos todas as máquinas, todos os sistemas de engrenagem,
Nos meus nervos locomotiva, carro elétrico, automóvel, debulhadora a vapor

Nos meus nervos máquina marítima, Diesel, semi-Diesel,
Campbell, Nos meus nervos instalação absoluta a vapor, a gás, a óleo e a eletricidade,
Máquina universal movida por correias de todos os momentos!

Todas as madrugadas são a madrugada e a vida.
Todas as auroras raiam no mesmo lugar:
Infinito...
Todas as alegrias de ave vêm da mesma garganta,
Todos os estremecimentos de folhas são da mesma árvore,
E todos os que se levantam cedo para ir trabalhar
Vão da mesma casa para a mesma fábrica por o mesmo caminho...

Rola, bola grande, formigueiro de consciências, terra,
Rola, auroreada, entardecida, a prumo sob sóis, noturna,
Rola no espaço abstrato, na noite mal iluminada realmente
Rola ...

Sinto na minha cabeça a velocidade de giro da terra,
E todos os países e todas as pessoas giram dentro de mim,
Centrífuga ânsia, raiva de ir por os ares até aos astros
Bate pancadas de encontro ao interior do meu crânio,
Põe-me alfinetes vendados por toda a consciência do meu corpo,
Faz-me levantar-me mil vezes e dirigir-me para Abstrato,
Para inencontrável, Ali sem restrições nenhumas,
A Meta invisível — todos os pontos onde eu não estou — e ao mesmo tempo ...

Ah, não estar parado nem a andar,
Não estar deitado nem de pé,
Nem acordado nem a dormir,
Nem aqui nem noutro ponto qualquer,
Resol,,,er a equação desta inquietação prolixa,
Saber onde estar para poder estar em toda a parte,
Saber onde deitar-me para estar passeando por todas as ruas ...

Ho-ho-ho-ho-ho-ho-ho

Cavalgada alada de mim por cima de todas as coisas,
Cavalgada estalada de mim por baixo de todas as coisas,
Cavalgada alada e estalada de mim por causa de todas as coisas ...

Hup-la por cima das árvores, hup-la por baixo dos tanques,
Hup-la contra as paredes, hup-la raspando nos troncos,
Hup-la no ar, hup-la no vento, hup-la, hup-la nas praias,
Numa velocidade crescente, insistente, violenta,
Hup-la hup-la hup-la hup-la ...

Cavalgada panteísta de mim por dentro de todas as coisas,
Cavalgada energética por dentro de todas as energias,
Cavalgada de mim por dentro do carvão que se queima, da lâmpada que arde,
Clarim claro da manhã ao fundo
Do semicírculo frio do horizonte,
Tênue clarim longínquo como bandeiras incertas
Desfraldadas para além de onde as cores são visíveis ...

Clarim trêmulo, poeira parada, onde a noite cessa,
Poeira de ouro parada no fundo da visibilidade ...

Carro que chia limpidamente, vapor que apita,
Guindaste que começa a girar no meu ouvido,
Tosse seca, nova do que sai de casa,
Leve arrepio matutino na alegria de viver,
Gargalhada súbita velada pela bruma exterior não sei como,
Costureira fadada para pior que a manhã que sente,
Operário tísico desfeito para feliz nesta hora
Inevitavelmente vital,
Em que o relevo das coisas é suave, certo e simpático,
Em que os muros são frescos ao contacto da mão, e as casas
Abrem aqu; e ali os olhos cortinados a branco...

Toda a madrugada é uma colina que oscila,
...................................................................
... e caminha tudo

Para a hora cheia de luz em que as lojas baixam as pálpebras
E rumor tráfego carroça comboio eu sinto sol estruge

Vertigem do meio-dia emoldurada a vertigens —
Sol dos vértices e nos... da minha visão estriada,
Do rodopio parado da minha retentiva seca,
Do abrumado clarão fixo da minha consciência de viver.

Rumor tráfego carroça comboio carros eu sinto sol rua,
Aros caixotes trolley loja rua i,itrines saia olhos
Rapidamente calhas carroças caixotes rua atravessar rua
Passeio lojistas "perdão" rua
Rua a passear por mim a passear pela rua por mim
Tudo espelhos as lojas de cá dentro das lojas de lá
A velocidade dos carros ao contrário nos espelhos oblíquos das montras,
O chão no ar o sol por baixo dos pés rua regas flores no cesto rua
O meu passado rua estremece camion rua não me recordo rua

Eu de cabeça pra baixo no centro da minha consciência de mim
Rua sem poder encontrar uma sensação só de cada vez rua
Rua pra trás e pra diante debaixo dos meus pés
Rua em X em Y em Z por dentro dos meus braços
Rua pelo meu monóculo em círculos de cinematógrafo pequeno,
Caleidoscópio em curvas iriadas nítidas rua.
Bebedeira da rua e de sentir ver ouvir tudo ao mesmo tempo.
Bater das fontes de estar vindo para cá ao mesmo tempo que vou para lá.
Comboio parte-te de encontro ao resguardo da linha de desvio!
Vapor navega direito ao cais e racha-te contra ele!
Automóvel guiado pela loucura de todo o universo precipita-te
Por todos os precipícios abaixo
E choca-te, trz!, esfrangalha-te no fundo do meu coração!

À moi, todos os objetos projéteis!
À moi, todos os objetos direções!
À moi, todos os objetos invisíveis de velozes!
Batam-me, trespassem-me, ultrapassem-me!
Sou eu que me bato, que me trespasso, que me ultrapasso!
A raiva de todos os ímpetos fecha em círculo-mim!

Hela-hoho comboio, automóvel, aeroplano minhas ânsias,
Velocidade entra por todas as idéias dentro,
Choca de encontro a todos os sonhos e parte-os,
Chamusca todos os ideais humanitários e úteis,
Atropela todos os sentimentos normais, decentes, concordantes,
Colhe no giro do teu volante vertiginoso e pesado
Os corpos de todas as filosofias, os tropos de todos os poemas,
Esfrangalha-os e fica só tu, volante abstrato nos ares,
Senhor supremo da hora européia, metálico a cio.
Vamos, que a cavalgada não tenha fim nem em Deus!
...............................................................
...............................................................
...............................................................
...............................................................

Dói-me a imaginação não sei como, mas é ela que dói,
Declina dentro de mim o sol no alto do céu.
Começa a tender a entardecer no azul e nos meus nervos.
Vamos ó cavalgada, quem mais me consegues tornar?
Eu que, veloz, voraz, comilão da energia abstrata,
Queria comer, beber, esfolar e arranhar o mundo,
Eu, que só me contentaria com calcar o universo aos pés,
Calcar, calcar, calcar até não sentir.
Eu, sinto que ficou fora do que imaginei tudo o que quis,
Que embora eu quisesse tudo, tudo me faltou.

Cavalgada desmantelada por cima de todos os cimos,
Cavalgada desarticulada por baixo de todos os poços,
Cavalgada vôo, cavalgada seta, cavalgada pensamento-relâmpago,
Cavalgada eu, cavalgada eu, cavalgada o universo — eu.
Helahoho-o-o-o-o-o-o-o ...

Meu ser elástico, mola, agulha, trepidação ...

Álvaro de Campos, 22-5-1916


Passagem das Horas é um poema da fase sensacionista de Álvaro de Campos. O poema aborda e desenvolve questões, angústias, pensamentos, desejos e lembranças que permeiam e arrebatam o ser humano em toda a sua existência. Entre vida e morte mergulha numa viagem interior do eu-lírico, bifurcando-se em busca do auto-conhecimento. Leva a sua empreitada às últimas consequências até redescobrir a vida, a morte, o recomeço. Coloca a questão da identidade ou da sua projeção na representação do tempo como imaginário utópico. 

A pulsão utópica encontra-se, portanto, na elaboração de várias imagens no texto deste poema. Assiste-se a uma compressão do tempo, como se a realidade só pudesse ganhar sentido deslocando-se do presente para um outro tempo que não é passado porque movimenta os seres e objetos.
Assim se estabelece o ciclo ininterrupto do fluir do tempo, da inexorável Passagem das Horas.