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terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Reflexões do Poeta

CANTO I

105
O recado que trazem é de amigos,
Mas debaixo o veneno vem coberto;
Que os pensamentos eram de inimigos,
Segundo foi o engano descoberto.
Ó grandes e gravíssimos perigos!
Ó caminho de vida nunca certo:
Que aonde a gente põe sua esperança,
Tenha a vida tão pouca segurança!


106
No mar tanta tormenta, e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme, e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?


O  Poeta reflete sobre a fragilidade e efemeridade da vida humana. 
Refere que o povo de Mombaça se finge  amigo dos portugueses para os traírem, mas são descobertos. 
Fala dos perigos e inseguranças, a ponto do ser humano não ter nenhum sítio no mundo onde se possa acolher e sentir seguro.
Apresenta a diferença entre o Homem, "bicho da terra tão pequeno" e as imensas forças da natureza.


quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Temas e Estilo em Álvaro de Campos


  •  Fase Decadentista


 O Decadentismo:
     . desilusão e tédio de viver
     . procura de novas sensações
     . busca da evasão
     . atitude desafiadora das normas instituídas

  • Fase Futurista e Sensacionista

O Futurismo:
     . apologia da civilização tecnológica
     . procura do objetivismo
     . atitude provocatória (infração dos 
  padrões morais estabelecidos)
     . defesa de uma estética não-aristotélica, 
  baseada na exaltação da força
     . quebra da tradição

O Sensacionismo:
     . experiência excessiva das sensações
     . sadismo e masoquismo
     . elogio consciente do mundo moderno
     . euforia emocional


  • Fase Intimista

O tédio existencial:
     . desassossego e angústia metafísicos (dor de viver)
     . dor de pensar
     . desalento, cansaço e abulia
     . solidão e isolamento
     . dificuldade de socialização
     . estranheza da realidade e dos outros
     . desajustamento face ao presente
     . tom introspetivo e pessimista
     . sentimento de frustração
     . constatação do absurdo


A nostalgia da infância:
     . infância como símbolo da pureza, 
  da inconsciência e da felicidade
     . consciência da perda irrecuperável 
  do tempo da meninice


  • Marcas formais e estilísticas 
▪ Estrofes e versos longos
▪ Versos soltos
▪ Ritmo rápido
▪ Linguagem exuberante
▪ Mistura de registos de língua
▪ Estilo intenso e repetitivo
▪ Irregularidade estrófica e métrica
▪ Riqueza estilística, adequada aos excessos do conteúdo   (enumerações, exclamações, adjetivações múltiplas, metáforas, paradoxos, personificações, sinestesias, hipérboles, apóstrofes, anáforas, aliterações…
▪ Vocabulário diversificado, com inclusão de empréstimos, neologismos, topónimos, antropónimos e onomatopeias

...




O que há em mim é sobretudo cansaço


O cansaço de que o poeta diz sofrer é incisivo, corrosivo, profundo. Não possui nem
objeto perfeitamente definido (não é cansaço “disto nem daquilo, / Nem sequer de
tudo ou de nada” – vv. 2-3), nem sequer motivo transparente: “Essas coisas todas – /
Essas e o que falta nelas eternamente –;/ Tudo isso…” (vv. 9, 10, 11). É um cansaço
“assim mesmo, ele mesmo” (vv. 4-5); é cansaço pelo cansaço, só cansaço.
Mas tal cansaço, apesar disso, envolve o poeta todo (“O que há em mim é sobretudo
cansaço” – v. 1); é “um cansaço, / Este cansaço, / Cansaço”. E note-se como esta referência
ao cansaço é acompanhada de elementos que evidenciam esse carácter de coisa
não definida – a disposição gradativa manifestada pelo contributo conjugado do artigo
indefinido um, dos pronomes demonstrativos isso, este, e a redução drástica no tamanho
dos versos (vv. 11, 12, 13).
É um cansaço grande e profundo (v. 26 – notar a anáfora a incidir no artigo indefinido
um… um… um) e ainda infecundo e supremíssimo (vv. 27, 28). A insistência no sufixo
íssimo, característico do superlativo absoluto sintético, usado isoladamente, deslocado
do adjetivo, a que anda habitualmente acoplado, e empregue como se fora ele mesmo
um adjetivo, aparece com uma dupla finalidade. Por um lado, destina-se a intensificar,
até ao paroxismo, e em conjugação com as reticências finais do v. 30, o sentido do
mesmo superlativo, e assim exprimir o cansaço indizível de que sofre o poeta; por
outro lado, reenviar ao verso inicial do texto, tudo se processando circularmente, em
espiral (o sem-sentido a manifestar-se): o cansaço pelo cansaço, sem objeto definido ou
motivo claro.
E este aspeto apresenta-se como essencial para distinguir e distanciar a pessoa
do poeta da pessoa dos outros. O poeta ama “infinitamente o finito”, deseja “impossivelmente
o possível”, quer “tudo, ou um pouco mais, se puder ser, / Ou até se não puder
ser…” (vv. 19 a 21 – notar a disposição em anáfora, na base da conjunção causal porque, a
gradação obtida com os verbos amo, desejo, quero; a expressividade dos advérbios de
modo infinitamente, impossivelmente; os jogos de palavras, em conjugação com o paradoxo
e a hipérbole; a pontuação, assente mais na sensibilidade que na lógica…).
Os outros são diferentes. E o poeta reparte-os por três grupos: os que amam o infinito,
os que desejam o impossível e os que não querem nada (vv. 14-16 – notar, uma vez
mais, a construção anafórica Há sem dúvida quem e o paralelismo que se pretende obter
com os verbos expressivos amar, desejar, querer, referidos aos outros e ao poeta, para
frisar bem a oposição entre eles).
Isto quererá dizer que os outros se acomodam, aceitam sem contestar – a vida ou o
sonho; o infinito, o impossível ou o nada. Notar a expressividade dos versos 23 a 25:
a disposição em anáfora da construção Para eles… Para eles… Para eles…, o recurso ao
quiasmo (vida vivida ou sonhada… sonho sonhado ou vivido…), os jogos de palavras
(vida vivida ou sonhada, sonho sonhado ou vivido), o paradoxo (tudo, nada), a organização
sintática deficiente (v. 26 e variante apresentada).
Em contrapartida, ao poeta resta-lhe o cansaço. Não porque ele seja um idealista, já
que ama o finito, o possível, tudo (“ou um pouco mais, se puder ser, / Ou até se não
puder ser…”, vv. 18 a 21). Só que ele não atinge o que ama/deseja/quer como pretenderia.
Daí se lhe instalar o cansaço na alma.
E deste modo se observa que o cansaço do poeta não é um cansaço físico, mas existencial.
Ele não chega a explicitar o motivo desse cansaço, ainda que indiretamente
sugira (vv. 18 a 21) que foram essas suas ambições – não concretizadas na medida
desejada: a impossibilidade de anulação de todos os limites, e desse modo a aproxima-
ção do absoluto – que provocaram nele esse cansaço, bem como as sensações inúteis
(v. 6), as paixões violentas por coisa nenhuma (v. 7), os amores intensos por o suposto em
alguém (v. 8); isto é: o viver excessivo, o correr cada momento no limite, o ter querido o
finito e o possível, mas ter-se desiludido.
Mas o poeta não deixa de insistir, por isso, sempre e repetidamente, em que é cansaço
o que sente (e o lexema encontra-se presente em 9 dos 30 versos do poema –
tomando lugar, portanto, em praticamente 1/3 do texto –, colocado em destaque, à
exceção do que acontece no v. 2, na parte final de cada verso). Um cansaço de tudo,
não especialmente, concretamente, de coisa alguma; cansaço da vida e de si – cansaço.


SILVA Lino Moreira da, 1989. Do Texto à Leitura 




Uma análise do poema "Aniversário"


Em 45 versos, distribuídos por estrofes irregulares […] e em verso livre, como é habitual em
Campos, tomando como espécie de leitmotiv obsessivo o “No tempo em que festejavam o dia dos meus
anos”, que funciona como espécie de refrão, evoca-se, de maneira nostálgica, um passado de
infância, em que “fazer anos era uma tradição de há séculos / E a alegria de todos, e a minha, estava certa
como uma religião qualquer.”
Era o momento em que se era “inteligente por entre a família”, porque no Eu/menino havia “a
grande saúde de não perceber coisa nenhuma” – ou seja, era o tempo em que o gozo era gozo sem
necessidade de justificação, o tempo de se ter a alegre inconsciência da ceifeira de que falava Pessoa
[…]. Porque assim era, esse tempo-inocente, era igualmente tempo de “não ter esperanças”, as
esperanças que outros tinham em seu lugar.
Após essa primeira evocação do tempo da saúde, em que “se era feliz e ninguém estava morto”,
um “refluxo” a marcar a disforia do tempo de depois e de hoje (3.ª estrofe), transmitido através de
metáforas, comparações e imagens poderosas: “O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do
fim da casa, / Pondo grelado nas paredes… […] / É terem vendido a casa, / É terem morrido todos, / É estar
eu sobrevivente a mim mesmo como um fósforo frio”.
Nada sobrou desse tempo feliz – a não ser o “desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez”,
mais adiante definido como fome devoradora: “Comer o passado como pão de fome, sem tempo de
manteiga nos dentes!”
Na 5.ª estrofe, um regresso maravilhado – na imaginação, claro – a esse passado em que a
mesa era posta com mais lugares, com loiças, copos diferentes e talheres mais bonitos, com ‘‘ as
tias velhas’’ (também evocadas na ‘‘Ode Marítima’’), os primos – e o acentuar, entre o encantamento
e a nostalgia: “e tudo era por minha causa” – é o tempo em que, todos, mais ou menos, somos
a pessoa mais importante do mundo…
E, depois, a penúltima estrofe, como conclusão, a marcar a amargura – “Para, meu coração, / Não
penses! Deixa o pensar na cabeça!” – no fundo é esse o drama, sentido por Campos como por Pessoa,
e “ultrapassado” (?) pela nitidez do olhar de Caeiro e pela reflexão melancólica de Reis, que visa
ser-lhe “indiferente” – o drama da dor de pensar, de ser consciente, lúcido, em vez de sentir, só.
O coração não é para pensar, é para sentir – o pensar é para a cabeça – diz Campos.
O final da estrofe é magnífico (ninguém como Campos o tinha dito –, que eu saiba ninguém
o disse melhor depois):
“Hoje, já não faço anos. / Duro. / Somam-se-me dias. / Serei velho quando for. / Mais nada.”
E a exclamação de raiva incontida e de impotência:
“Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!”


PAIS, Amélia Pinto, 2002. Para compreender Fernando Pessoa. 

Tabacaria (Instrumental por Sam the Kid)


domingo, 8 de janeiro de 2017

                                    POEMA EM LINHA RETA


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


Álvaro de Campos