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quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

O que há em mim é sobretudo cansaço


O cansaço de que o poeta diz sofrer é incisivo, corrosivo, profundo. Não possui nem
objeto perfeitamente definido (não é cansaço “disto nem daquilo, / Nem sequer de
tudo ou de nada” – vv. 2-3), nem sequer motivo transparente: “Essas coisas todas – /
Essas e o que falta nelas eternamente –;/ Tudo isso…” (vv. 9, 10, 11). É um cansaço
“assim mesmo, ele mesmo” (vv. 4-5); é cansaço pelo cansaço, só cansaço.
Mas tal cansaço, apesar disso, envolve o poeta todo (“O que há em mim é sobretudo
cansaço” – v. 1); é “um cansaço, / Este cansaço, / Cansaço”. E note-se como esta referência
ao cansaço é acompanhada de elementos que evidenciam esse carácter de coisa
não definida – a disposição gradativa manifestada pelo contributo conjugado do artigo
indefinido um, dos pronomes demonstrativos isso, este, e a redução drástica no tamanho
dos versos (vv. 11, 12, 13).
É um cansaço grande e profundo (v. 26 – notar a anáfora a incidir no artigo indefinido
um… um… um) e ainda infecundo e supremíssimo (vv. 27, 28). A insistência no sufixo
íssimo, característico do superlativo absoluto sintético, usado isoladamente, deslocado
do adjetivo, a que anda habitualmente acoplado, e empregue como se fora ele mesmo
um adjetivo, aparece com uma dupla finalidade. Por um lado, destina-se a intensificar,
até ao paroxismo, e em conjugação com as reticências finais do v. 30, o sentido do
mesmo superlativo, e assim exprimir o cansaço indizível de que sofre o poeta; por
outro lado, reenviar ao verso inicial do texto, tudo se processando circularmente, em
espiral (o sem-sentido a manifestar-se): o cansaço pelo cansaço, sem objeto definido ou
motivo claro.
E este aspeto apresenta-se como essencial para distinguir e distanciar a pessoa
do poeta da pessoa dos outros. O poeta ama “infinitamente o finito”, deseja “impossivelmente
o possível”, quer “tudo, ou um pouco mais, se puder ser, / Ou até se não puder
ser…” (vv. 19 a 21 – notar a disposição em anáfora, na base da conjunção causal porque, a
gradação obtida com os verbos amo, desejo, quero; a expressividade dos advérbios de
modo infinitamente, impossivelmente; os jogos de palavras, em conjugação com o paradoxo
e a hipérbole; a pontuação, assente mais na sensibilidade que na lógica…).
Os outros são diferentes. E o poeta reparte-os por três grupos: os que amam o infinito,
os que desejam o impossível e os que não querem nada (vv. 14-16 – notar, uma vez
mais, a construção anafórica Há sem dúvida quem e o paralelismo que se pretende obter
com os verbos expressivos amar, desejar, querer, referidos aos outros e ao poeta, para
frisar bem a oposição entre eles).
Isto quererá dizer que os outros se acomodam, aceitam sem contestar – a vida ou o
sonho; o infinito, o impossível ou o nada. Notar a expressividade dos versos 23 a 25:
a disposição em anáfora da construção Para eles… Para eles… Para eles…, o recurso ao
quiasmo (vida vivida ou sonhada… sonho sonhado ou vivido…), os jogos de palavras
(vida vivida ou sonhada, sonho sonhado ou vivido), o paradoxo (tudo, nada), a organização
sintática deficiente (v. 26 e variante apresentada).
Em contrapartida, ao poeta resta-lhe o cansaço. Não porque ele seja um idealista, já
que ama o finito, o possível, tudo (“ou um pouco mais, se puder ser, / Ou até se não
puder ser…”, vv. 18 a 21). Só que ele não atinge o que ama/deseja/quer como pretenderia.
Daí se lhe instalar o cansaço na alma.
E deste modo se observa que o cansaço do poeta não é um cansaço físico, mas existencial.
Ele não chega a explicitar o motivo desse cansaço, ainda que indiretamente
sugira (vv. 18 a 21) que foram essas suas ambições – não concretizadas na medida
desejada: a impossibilidade de anulação de todos os limites, e desse modo a aproxima-
ção do absoluto – que provocaram nele esse cansaço, bem como as sensações inúteis
(v. 6), as paixões violentas por coisa nenhuma (v. 7), os amores intensos por o suposto em
alguém (v. 8); isto é: o viver excessivo, o correr cada momento no limite, o ter querido o
finito e o possível, mas ter-se desiludido.
Mas o poeta não deixa de insistir, por isso, sempre e repetidamente, em que é cansaço
o que sente (e o lexema encontra-se presente em 9 dos 30 versos do poema –
tomando lugar, portanto, em praticamente 1/3 do texto –, colocado em destaque, à
exceção do que acontece no v. 2, na parte final de cada verso). Um cansaço de tudo,
não especialmente, concretamente, de coisa alguma; cansaço da vida e de si – cansaço.


SILVA Lino Moreira da, 1989. Do Texto à Leitura 




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