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quarta-feira, 24 de maio de 2017

Excertos de Exames Nacionais



Esta paixão pela língua portuguesa, que aqui confesso, cega não será, superlativa muito
menos. Entendo-a rica, porque vem das boas famílias dos antigos e o que recebeu multiplicou.
Mas nunca afirmarei que é a mais rica ou a mais bela do mundo. Cada povo verá no seu
idioma mais virtudes que em idiomas alheios. Que a disputa, se a houver, seja festiva, pois
que os idiomas não ocupam espaço e não geram rivais mas poliglotas. Anterior à festa, está,
porém, aquilo que dizem História. E a História é bruta e territorial.
Para abordar o assunto do domínio da língua portuguesa sobre os povos são necessários
delicadeza e conhecimento, inteligência e desassombro em dose máxima. Dou-me por incapaz
e renuncio a uma tentativa de discurso. Sei, sim, que houve opressão e apagamento. Mas
talvez não nos caiba desculparmo-nos pelos conceitos e ações de antepassados, visto que
não nos assumimos legatários e o continuum moral já foi cortado. […]
As línguas são os únicos seres vivos que não têm origem natural. O erro humano pode
prolongar-se, mesmo inocentemente, por descuido. O português carregará ainda alguma febre
imperial no corpo e é natural que desconfiem dele. Mas acontece que a repressão é mecânica
e a língua é biológica. Se chega às terras de outros povos na bagagem do colonizador, em
breve sai e se desnuda e se alimenta, e adormece e procria. As armaduras ficam no chão,
enferrujadas, podres. A formação orgânica progride.
Que desígnio será o seu, agora, se não o de trocar e conviver, isto é, integrar a plenitude,
reconhecendo e respeitando a alteridade? Com os nossos instrumentos humanistas, seremos
nós os capazes de «medir», como escreve o Professor Eduardo Lourenço, «esse impalpável
mas não menos denso sentimento de distância cultural que separa, no interior da mesma
língua, esses novos imaginários»? […]
 O nosso mundo de sobreviventes está seguro por laços muitos finos. Eu vejo os fios
que unem os textos nas diversas versões do português, leves fios resistentes e aplicados
a construírem uma teia que não rasgue. Quando o angolano Ondjaki dedica um poema ao
brasileiro Manoel de Barros, quando Mia Couto reconhece a influência que teve Guimarães
Rosa na sua escrita transfiguradora e transfigurada pelas africanas narrativas do seu povo;
quando a portuguesa Maria Gabriela Llansol considera Lispector «uma irmã inteiramente
dispersa no nevoeiro», vemos a língua portuguesa a ocupar - não como o invasor ocupa
a terra, mas como o sangue ocupa o coração - um espaço livre, um sítio para viver, uma
comunidade de diferenças elástica, simbiótica e altiva. Esta é a ditosa língua, minha amada.
Hélia Correia, «Ditosa língua», Público, 8 de julho 2015



1. No contexto em que ocorre, a forma verbal «verá» (linha 3) exprime uma
(A) suposição.
(B) certeza.
(C) ordem.
(D) obrigação

2. Nas expressões «Se chega» (linha 15) e «se desnuda» (linha 16), as palavras sublinhadas são
(A) conjunção e pronome, respetivamente.
(B) pronome e conjunção, respetivamente.
(C) conjunções, em ambos os casos.
(D) pronomes, em ambos os casos.

3. Relativamente à expressão «a língua portuguesa» (linha 29), o recurso ao pronome demonstrativo presente na linha 31 constitui uma
(A) substituição por hiperonímia.
(B) substituição por sinonímia.
(C) anáfora.
(D) catáfora.

4. Indique o valor da oração relativa «que aqui confesso» (linha 1).
5. Indique a função sintática desempenhada pela oração «que houve opressão e apagamento» (linha 9
6. Identifique o antecedente do possessivo «sua» (linha 27).
Época Especial 2016







Só faço a mala à última hora. Nos dias anteriores a uma grande viagem, tento resolver uma
enorme quantidade de assuntos que, com frequência, estavam por tratar há meses. Tento
arrumar tudo, até a consciência, e partir tranquilo. Normalmente, consigo fazê-lo. Soluciono
burocracias acumuladas, organizo gavetas, escrevo e-mails aborrecidos que andava a adiar
e que, durante esse tempo, pareciam crescer em tamanho, em número e em aborrecimento.
Nessa vertigem, não tenho consciência daquilo que me espera à distância de horas.
A mente, ocupada com a obsessão de eliminar problemas antigos, não se liberta a conceber
a viagem que começará em breve. Mesmo a fazer a mala, ainda não estou consciente da
enorme transformação que está prestes a acontecer. Mantenho uma noção simultaneamente
teórica e prática daquilo que planeio: número de dias, calor/frio, necessidades específicas.
Assim, escolho roupa e objetos, entalo meias nos espaços livres.
As partidas. Saio do táxi e tudo segue uma rotina: ver no placard eletrónico qual o balcão
do check-in certo, caminhar a um ritmo certo, pedir para me arranjarem um lugar que não
seja no meio, e guardo sempre o bilhete e os documentos no mesmo sítio, e sigo sempre a
mesma ordem na máquina dos metais. Tenho sempre um livro para ler. Com ele, espero junto
ao portão de embarque. Quando a voz do altifalante avisa que vai começar o embarque, não
tenho pressa.
Sei que chegaremos todos ao mesmo tempo. Entro no avião com o pé direito, sento-me e,
só nesse momento, começo a fantasiar sobre o destino para o qual me dirijo. Faço-o durante
toda a viagem.
Miami, Pequim, Moscovo. Antes de levantar voo, mas já com o cinto apertado, tinha ideias
sobre cada uma dessas cidades. Nesse tempo agora irrepetível, acreditava nessas ideias
com firmeza, eram uma realidade que tinha como base leituras, filmes, conversas e uma
enorme quantidade de suspeitas que, em última análise, refletiam a minha visão do mundo. Só
concebia aquilo que era capaz de conceber. A minha experiência passada era muito importante
para traçar essas fronteiras, mas aquilo que eu imaginava tinha noção da necessidade de
transcender essa experiência. Não sou capaz de garantir que fosse capaz de fazê-lo. Com
base nesse conhecimento, a escolha destes três destinos teve como eixo a vontade de
testemunhar três ângulos essenciais da contemporaneidade política e civilizacional; três polos
de influência mundial que contribuíssem com pistas para o retrato daquilo que é o mundo hoje
e, ao mesmo tempo, permitissem intuir um pouco do mundo que vem. Tentando erguer o
tripé de um álbum de impressões, memórias, imagens, detalhes de instantes.
No que diz respeito ao olhar, impôs-se aquele que está e que privilegia a experiência
simples dos sentidos. No fundo, para quem foi, o mais fundamental desse tempo, aquilo que
efetivamente lhe acrescentou mundo, foi ter ido, ter estado lá realmente, ter olhado em volta.
Há muito que se pode aprender em enciclopédias, documentários ou na internet, mas também
há o resto: aquilo que se pode sentir.
José Luís Peixoto, Volta ao Mundo, n.º 209, março de 2012





1. A anteposição do pronome «lhe» (linha 35) justifica-se pela
(A) presença de uma expressão adverbial enfática.
(B) presença de um advérbio de negação.
(C) sua integração numa frase em discurso indireto livre.
(D) sua integração numa oração subordinada relativa.


2. «Aí» (linha 31) e «lá» (linha 33) são
(A) um deítico espacial e um deítico temporal, respetivamente.
(B) um deítico temporal e um deítico espacial, respetivamente.
(C) deíticos temporais em ambos os casos.
(D) deíticos espaciais em ambos os casos.

3. A oração «que vai começar o embarque» (linha 16) é uma oração subordinada
(A) substantiva relativa.
(B) substantiva completiva.
(C) adjetiva relativa.
(D) adverbial consecutiva.

4. Identifique o valor da oração subordinada adjetiva relativa presente em «A mente, ocupada com a obsessão de eliminar problemas antigos, não se liberta a conceber a viagem que começará em breve.» (linhas 7 e 8). restritivo

5. Identifique a função sintática desempenhada pela oração subordinada presente na frase «Sei que
chegaremos todos ao mesmo tempo.» (linha 18). complemento direto

6. Identifique o antecedente do pronome «o» presente na frase «Faço-o durante toda a viagem.»
(linhas 19 e 20). o destino para o qual me dirijo



Época Especial 2015




«Alberto Caeiro é o meu mestre», afirmava Fernando Nogueira Pessoa. E apesar de os
leitores do século XXI preferirem claramente o trágico engenheiro Álvaro de Campos ou o
solitário urbano Bernardo Soares, a verdade é que é de Caeiro que irradia toda a heteronímia
pessoana, pois ele é tudo o que Fernando Pessoa não pode ser: uno porque infinitamente
múltiplo, o argonauta das sensações, o sol do universo pessoano. Faz hoje cem anos que
Pessoa criou Alberto Caeiro. Tinha 26 anos.
«Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro
– de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro
como, em qualquer espécie de realidade».
Foi nesta carta a Adolfo Casais Monteiro que Pessoa descreveu o «nascimento» de Caeiro.
Apesar de os estudos pessoanos terem demonstrado que a carta não diz toda a verdade sobre
a criação do heterónimo, nem dos poemas, a verdade é que aquilo que nela haverá de ficção
serve para que Pessoa continue o seu jogo infinito com as racionalmente definidas fronteiras
do real e do irreal.
«Alberto Caeiro é o homem reconciliado com a natureza, no qual o estar e o pensar
coincidem. Ele resolveu todos os dramas entre a vida e a consciência», diz o filósofo José Gil,
que rejeita a ideia defendida por muitos estudiosos da «alma una» de Caeiro.
Inês Pedrosa refere que Caeiro seria a «figura da musa» para o poeta, que aliás o descreve
em termos helénicos, louro como um deus grego. Segundo a cronologia feita por Pessoa,
Alberto Caeiro nasceu em 16 de abril de 1889, em Lisboa. Órfão de pai e mãe, não exerceu
qualquer profissão e estudou apenas até à 4.ª classe. Viveu grande parte da sua vida pobre
e frágil no Ribatejo, na quinta da sua tia-avó idosa, e aí escreveu O Guardador de Rebanhos
e depois O Pastor Amoroso. Voltou no final da sua curta vida para Lisboa, onde escreveu
Os Poemas Inconjuntos, antes de morrer de tuberculose, em 1915.
Caeiro não é um filósofo, é um sábio para quem viver e pensar não são atos separados. Por
isso, não faz sentido considerá-lo menos real do que Pessoa. E cem anos depois, apesar de
não ser o poeta mais lido, Alberto Caeiro tem uma materialidade de que só quem não lê poesia
se atreve a duvidar. O poeta não precisa de biografia e não precisa de um corpo com órgãos
para se alojar em nós, para nos pôr a ver o mundo a partir dos seus olhos, «do seu presente
intemporal igual ao das crianças e dos animais», como escreveu Octávio Paz.
Joana Emídio Marques, Diário de Notícias, 8 de março de 2014, p. 47 (adaptado)





1.1 O recurso à expressão «tudo o que Fernando Pessoa não pode ser» (linha 4) configura uma
(A) elipse.
(B) anáfora.
(C) reiteração.
(D) catáfora.


1.2. A utilização de «pois» (linha 4) e de «Por isso» (linhas 25-26) contribui para a coesão
(A) frásica.
(B) interfrásica.
(C) temporal.
(D) lexical.

1.3. No texto, a palavra «nascimento» (linha 10) encontra-se entre aspas porque se pretende destacar
(A) uma citação.
(B) uma expressão irónica.
(C) um sentido figurado.
(D) um título.

1.4. No excerto «Inês Pedrosa refere que Caeiro seria a “figura da musa” para o poeta, que aliás o
descreve em termos helénicos, louro como um deus grego.» (linhas 18-19), as palavras sublinhadas
são
(A) um pronome e uma conjunção, respetivamente.
(B) uma conjunção e um pronome, respetivamente.
(C) pronomes em ambos os casos.
(D) conjunções em ambos os casos.


2.1. Classifique a oração «que a carta não diz toda a verdade sobre a criação do heterónimo, nem dos
poemas» (linhas 11-12). completiva

2.2. Identifique a função sintática desempenhada pela expressão «viver e pensar» (linha 25). sujeito

Época Especial 2014


Chamar Casa de Papel a uma crónica em torno das coisas dos livros é já denunciar um
saudosismo romântico. Fica um tom melancólico no ar, uma poeticidade a mudar para antiga,
talvez um certo lamento. Não sou nada contra o livro digital e a maravilha que as tecnologias
oferecem. Mas sou do tempo do papel e sonhei com os livros de papel. Quando pensei ser
escritor, um livro assim abriu-se acima da minha cabeça imaginária como um telhado sob o
qual passei a habitar.
Guardarei sempre essa ideia, ainda que possa vir a ler em ecrãs sofisticados e frios. O livro
de papel, como o coração, é um símbolo. Habituei-me a conferir-lhe determinadas mágicas
que, por mais sofisticação que me assalte, não serão substituídas. O livro, esse de folhas,
pulsa. O livro pulsa.
As casas de papel são modos de pensar na tangibilidade do texto, na manualidade de que
ele dependeu para ser lido. São modos de pensar nos autores. Cada autor como um lugar e um
abrigo. Um lugar. Ler um livro é estar num autor. Preciso de pensar nos objetos para acreditar
nos lugares. Oh, nossa deslumbrante desgraça mudadora, não consigo sentir-me bonito dentro
de um Kindle, de um iPad ou de um Kobo. Penso em mim melhor numa coisa entre capas. A
ilustração sem pilhas. As letras sem pilhas. Eternas e sem mudanças. De confiança.
Quantas vezes, estupefacto, abri um livro na mesma página para encontrar a mesma frase
da mesma maneira apresentada? E que prazer saber que a expectativa de que aquele universo
se preserve não sairia gorada, porque os livros de papel são estáveis, não pensam em ser outra
coisa senão por dentro das próprias palavras. Precisei muitas vezes de reencontrar páginas
específicas, com o seu grafismo cristalizado, o seu grafismo diamante, a guardarem‑me o que
não podia perder.
Amar um livro é pedir-lhe que seja sempre nosso, assim, como um amor que se conserva
para repetir ou reaprender. Como poderemos jurar fidelidade a um texto que se desliga? É
como não ter sentimentos, descansar na morte, não permanecer vivo enquanto espera por
nós. É infiel. Não o podemos sequer perfumar e eu tenho livros que me foram oferecidos com
aroma de buganvílias e canela. Gosto muito. Os leitores, sabemos bem, são territoriais. Como
os cães. Sublinhamos e não suportamos os sublinhados dos outros. Ainda que toscos, mal
alinhados, são a marca da nossa passagem por ali.
Valter Hugo Mãe, «Revista 2», Público,18 de novembro de 2012 (adaptado)

nota
iPad, Kindle, Kobo (linha 15) – dispositivos que permitem a leitura em formato digital.





1.1 O vocábulo «folhas» (linha 9), relativamente ao vocábulo «livro» (linha 7), é um
(A) hipónimo.
(B) merónimo.
(C) holónimo.
(D) hiperónimo.

1.2. Na expressão «Oh, nossa deslumbrante desgraça mudadora» (linha 14), o autor recorre à
(A) hipálage.
(B) metáfora.
(C) metonímia.
(D) ironia.


2.1. Classifique a oração «para acreditar nos lugares» (linhas 13 e 14). final

2.2. Indique o antecedente do pronome que ocorre em «Não o podemos sequer perfumar» (linha 26).
        texto que se desliga
2.3. Identifique a função sintática do pronome pessoal sublinhado em «eu tenho livros que me foram
oferecidos» (linha 26).  complemento indireto


Época Especial 2013


quarta-feira, 17 de maio de 2017

Retrato de uma Princesa Desconhecida




Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Ávidos cruéis e fraudulentos


Foi um imenso desperdiçar de gente
Para que ela fosse aquela perfeição
Solitária exilada sem destino

Perguntas de um Operário Letrado



Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilónia, tantas vezes destruída,
Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
Da Lima Dourada moravam seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde
Foram os seus pedreiros? A grande Roma
Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio
Só tinha palácios
Para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida
Na noite em que o mar a engoliu
Viu afogados gritar por seus escravos.

O jovem Alexandre conquistou as Índias
Sozinho?
César venceu os gauleses.
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?
Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha
Chorou. E ninguém mais?
Frederico II ganhou a guerra dos sete anos
Quem mais a ganhou?

Em cada página uma vitória.
Quem cozinhava os festins?
Em cada década um grande homem.
Quem pagava as despesas?

Tantas histórias
Quantas perguntas
                                               Bertolt Brecht











quarta-feira, 10 de maio de 2017

Memorial do Convento


Algumas Personagens





O padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão representa as novas ideias que causavam estranheza na inculta sociedade portuguesa. 
Estrangeirado, Bartolomeu de Gusmão tornou-se um alvo apetecido do chacota da corte e da Inquisição, apesar da protecção real.
Homem curioso e grande orador sacro (a sua fama aproxima-o do padre António Vieira).

Evidenciou, ao longo da obra, uma profunda crise de fé, a que as leituras diversificadas e a postura "antidogmática" não serão alheios, numa busca incessante do saber.

Era conhecido por "Voador" - torna-o elemento catalisador do voo do passarola, conjuntamente com Baltasar e Blimunda. 
A tríade corporiza o sonho e o empenho tornados realidade, a par da desgraça, também ela, partilhada (loucura e morte, em Toledo, de Bartolomeu de Gusmão, morte de Baltasar Sete-Sóis no auto-de-fé e solidão de Blimunda).




Domenico Scarlatti

- Italiano, nascido em Nápoles há 35 anos é uma figura completa, rosto comprido, boca larga e firme, olhos afastados.

-Representa a arte que, 
aliada ao sonho, 
permite a cura de Blimunda e possibilita a conclusão e o voo da passarola.


O Clero
A crítica subjacente a todo o discurso narrativo enfatiza a hipocrisia e a violência dos representantes do espiritualismo convencional, da religiosidade vazia, baseada em rituais que, em vez de elevarem o espírito, originam desregramento, corrupção e degradação moral.

 o papel do clero na Inquisição é uma marca negativa.

O Povo
O verdadeiro protagonista de Memorial do Convento. Espoliado, rude, violento, o povo atravessa toda a narrativa, numa construção de figuras que, embora corporizadas por Baltasar e Blimunda, tipificam a massa coletiva e anónima que construiu, de facto, o convento.



ESPAÇO FÍSICO

São dois os espaços físicos nos quais se desenrola a acção: Lisboa e Mafra.

Lisboa, enquanto macro - espaço, integra outros espaços:

TERREIRO DO PAÇO;

ROSSIO;

SÃO SEBASTIÃO DA PEDREIRA.


Mafra- Alto da Vela ( local escolhido para a construção do convento)

Ilha da Madeira- Onde começaram por se alojar mil trabalhadores, chegando depois a quatro mil.


                                                                ESPAÇO SOCIAL

O espaço social é construído, na obra, através do relato de determinados momentos (ou episódios) e do percurso de personagens que tipificam um determinado grupo social, caracterizando-o.

Ao nível da construção do espaço social, destacam-se os seguintes momentos: 

PROCISSÃO DA QUARESMA;
AUTOS-DE-FÉ;
A TOURADA;
PROCISSÃO DO CORPO DE DEUS;
O TRABALHO NO CONVENTO.


Procissão da Quaresma


 Excessos praticados durante o Entrudo (satisfação dos prazeres carnais) e brincadeiras carnavalescas - as pessoas comiam e bebiam demasiado, davam "umbigadas pelas esquinas", atiravam água à cara umas das outras, batiam nas mais desprevenidas, tocavam gaitas, espojavam-se nas ruas.


 Penitência física e mortificação da alma após os desregramentos durante o Entrudo (é tempo de "mortificar a alma para que o corpo finja arrepender-se”)



Procissão do Corpo de Deus

A procissão do Corpo de Deus, em conjunto com a procissão da quaresma, caracteriza a sociedade em geral.
 
Nos dias que antecedem a procissão do corpo de Deus, as damas vem às janelas mostrar os seus penteados às vizinhas, há pessoas a dançar e a tocar na rua, e também se improvisam touradas.
O povo ao ver todos os preparativos para a procissão do corpo de Deus fica fascinado com a riqueza que esta ostenta.
A cerimónia começa ainda de madrugada com as pessoas a dirigirem-se para ocupar as alas da procissão.
A procissão é enorme!
(24 bandeiras dos ofícios, a imagem de são Jorge, o estandarte do santíssimo sacramento, as comunidades conventuais, o rei e o povo segue a procissão, no final de tudo.)

Ambas as procissões realçam a forma como a população se manifesta-se histericamente e utiliza as festas religiosas para satisfações carnais.
Em particular, durante a procissão da quaresma a população revela o seu gosto por sangue (quando as pessoas se exaltam devido ao som do chicote e a visão do sangue que escorre). Por outro lado, a procissão do corpo de deus mostra uma igreja e um rei fútil, pois o facto da procissão estar cheia de adornos luxuosos não contribui propriamente para a glorificação divina, mas sim, mas a demonstração do monarca e da igreja.


Autos-de-fé (Rossio) 

 O Rossio está novamente cheio de assistência; a população está duplamente em festa, porque é domingo e porque vai assistir a um auto-de­-fé (passaram dois anos após o último evento deste tipo).

 O narrador revela a sua dificuldade em perceber se o povo gosta mais de autos-de-fé ou de touradas, evidenciando com esta afirmação a sua ironia crítica perante um povo que revela um gosto sanguinário e procura nas emoções fortes uma forma de preencher o vazio da sua existência.



Tourada (Terreiro do Paço)


 O espectáculo começa e o narrador enfatiza a forma como os touros são torturados, exibindo o sangue, as feridas, as "tripas“ ao público que, em exaltação, se liberta de inibições ("os homens em delírio apalpam as mulheres delirantes, e elas esfregam-se por eles sem disfarce” .


ESPAÇO PSICOLÓGICO

O espaço psicológico é constituído pelo conjunto de elementos que traduz a interioridade das personagens. 


O sonho – a rainha sonha diversas vezes com o cunhado, D. Francisco. Ao longo do romance, são descritos com alguma insistência os sonhos de diversas personagens, dando conta dos seus mais íntimos desejos, ansiedades e inquietações…
A imaginação – por exemplo, a peregrinação em busca de Baltasar, durante nove anos, Quantas vezes imaginou Blimunda que estando sentada na praça de uma vila, a pedir esmola, um homem se aproximaria… (Cap. XXV)
A memória – Quando Baltasar, por exemplo, relembra o momento em que perdeu a sua mão esquerda na guerra. (VIII)
A reflexão – nomeadamente, a conversa entre a infanta D. Maria Bárbara e sua mãe durante o cortejo nupcial .(XXII)




O TEMPO DIEGÉTICO  (da História)


Trata-se do tempo em que decorre a acção.

O fluir do tempo, mais do que através da recorrência a marcos cronológicos específicos, é sugerido pelas transformações sofridas pelas personagens e por alguns espaços e objectos ao longo da obra.



As referências cronológicas mais importantes são as seguintes:

A acção inicia-se em 1711. D. João V ainda não fizera vinte e dois anos e D. Maria Ana Josefa chegara há mais de dois anos da Áustria.


em 1716, tem lugar a bênção da primeira pedra do Convento de Mafra;

em 1717, Baltasar e Blimunda regressam a Lisboa para trabalhar na passarola do padre Bartolomeu de Gusmão;

em 1719, celebra-se o casamento de D. José com Mariana Vitória e de Maria Bárbara com o príncipe D. Fernando (VI de Espanha);

em 1730, mais propriamente no dia 22 de Outubro, o dia do quadragésimo primeiro aniversário do rei, realiza-se a sagração do Convento de Mafra;

a acção termina em 1739, no momento em que Blimunda vê Baltasar a ser queimado em Lisboa, num auto-de-fé.



TEMPO DO DISCURSO
A antecipação de alguns acontecimentos serve os seguintes propósitos :

a crítica social - é o caso das prolepses que dão a conhecer as mortes do sobrinho de Baltasar e do infante D. Pedro, de modo a estabelecer o contraste entre os dois funerais, ou a morte de Álvaro Diogo, que viria a cair de uma parede, durante a construção do convento, assim como a informação sobre os bastardos que o rei iria gerar, filhos das freiras que seduzia;

 a visão globalizante de tempos distintos por parte do narrador (o tempo da história e, num tempo futuro, o do momento da escrita) - cabem aqui as referências aos cravos (outrora, nas pontas das varas dos capelães; muito mais tarde, símbolos da revolução do 25 de Abril), a associação entre os possíveis voos da passarola e o facto de os homens terem ido à Lua, no século XX, a alusão ao tipo de diversões que se vivia no século XVII e ao cinema, entre outras.


LINGUAGEM


        O autor utiliza, em maior ou menor grau, o registo de língua familiar e popular com sentido irónico e crítico ou como forma de traduzir o estatuto social das personagens.
Popular: "de boca à banda" 
Familiar: "Meu querido filho, como foi isso, quem te fez isto..." 
Cuidado: "não havendo portanto mediano termo entre a papada pletórica e o pescoço engelhado, entre o nariz rubicundo e o outro heréctico“

As principais figuras de estilo:
- metáfora
-ironia
-hipálage
-aforismo
-oposições (antonímia)

Formas verbais
- o gerúndio ( para traduzir movimento, duração,…)
- O modo imperativo( como reminiscência da oratória barroca, liga-se à ironia)
 o presente do indicativo( transporta o leitor para o tempo da narrativa)


INTERAÇÃO COM A LÍNGUA PORTUGUESA

Quadras populares: "Aqui me traz minha pena com bastante sobressalto, porque quer voar mais alto, a mais queda se condena".
Contos tradicionais: "Era uma vez uma rainha que vivia com o seu real marido em palácio...".
Luís de Camões, Os Lusíadas: "O homem, bicho da terra" .
Padre António Vieira, Sermão de Santo António aos Peixes: "Estão parados diante do último pano da história de Tobias, aquele onde o amargo fel do peixe restitui a vista ao cego. A amargura é o olhar dos videntes, senhor Domenico Scarlatti,...".
Fernando Pessoa, Mensagem: "Em seu trono entre o brilho das estrelas, com seu manto de noite. solidão, tem aos seus pés o mar novo e as mortas eras, o único imperador que tem, deveras, o globo mundo em sua mão, este tal foi o infante D. Henrique, consoante o louvará o poeta por ora ainda não nascido... “.
Estilo barroco: "Parece apenas um gracioso jogo de palavras, um brincar com os sentidos que elas têm, como nesta época se usa, sem que extrema mente importe o entendimento ou propositadamente o escurecendo."



Simbolismo

A História, em Memorial do Convento, torna-se matéria simbólica para refletir sobre o presente , na perspetiva da denúncia para dela se extrair uma moralidade que sirva de lição para o futuro


O que representam, na obra, Baltasar e Blimunda?
     Representam a capacidade humana de lutar contra a repressão; a capacidade de libertação de todo um povo oprimido.
     Sete-Sóis e Sete-Luas simbolizam, juntos, uma totalidade e isto por dois motivos:
– porque são Sol e Lua, astros que complementam a unidade do tempo, feito de dia (Sol) e de noite (Lua);
– mas também porque o número sete representa, na simbologia hebraica, a totalidade humana, simultaneamente masculina e feminina.
- criam a passarola da liberdade tal como Ícaro.


Bartolomeu de Gusmão
Representa o ser fragmentário, dividido entre a religião e a alquimia.
Simboliza a aspiração humana
( voo da passarola)  

Scarlatti
Ligado à música simboliza a ascensão de um homem através da música.



Sete – representa a totalidade do universo 
Está presente no nome do par amoroso para representar a harmonia cósmica. 

Nove – representa a gestação, a renovação e o renascimento.

Passarola – é o elo de ligação entre o céu e a Terra, na ânsia da realização e da libertação.

A mãe da pedra - Uma outra situação-acontecimento de cariz mítico constitui-se como a gesta heróica do transporte da pedra gigante de mármore. Anuncia os "trabalhos" fabulosos.



TEMAS

A opulência dos ricos / a extrema pobreza do povo 
«Esta cidade, mais que todas, é uma boca que mastiga de sobejo para um lado e de escasso para o outro.»

 A religião repressiva e degradação dos costumes
«entre duas igrejas, foi encontrar-se com um homem.»
«alivia-se a necessidade, na peniqueira ou no ventre das madres»

A plenitude do amor / o casamento de conveniência

Elogio do Sonho/Utopia
A história do sonho de voar, personificado na figura do padre--cientista Bartolomeu Lourenço de Gusmão (poder do sonho e da vontade) 

Ânsia de liberdade/ repressão da Inquisição