Número total de visualizações de páginas

domingo, 3 de novembro de 2019

Poemas de Pessoa ortónimo

 A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.
Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.


________________________......_________________


     Ó sino da minha aldeia,
     Dolente na tarde calma,
     Cada tua badalada
     Soa dentro da minha alma.

 5   E é tão lento o teu soar,
     Tão como triste da vida,
     Que já a primeira pancada
     Tem o som de repetida.

      Por mais que me tanjas perto
 10 Quando passo, sempre errante,
     És para mim como um sonho.
     Soas-me na alma distante.

    A cada pancada tua
 15 Vibrante no céu aberto,
     Sinto mais longe o passado,
     Sinto a saudade mais perto.

                                           Fernando Pessoa


Em primeiro lugar, neste poema, cujo tema é a nostalgia de infância, o sujeito poético, ser errante (“sempre errante”), recorda o passado (“Sinto mais longe o passado”), tempo de felicidade como um bem perdido, encontrando apenas conforto e sentido para a vida no tempo da infância.

Logo no primeiro verso, o sujeito lírico interpela «o sino da [sua] aldeia», com recurso à apóstrofe (“Ó sino”), a qual concorre para uma maior aproximação entre o eu lírico e o sino a quem este se dirige. O toque do sino estimula a memória do sujeito poético (v.4), no sentido em que o faz recordar a sua infância, passado distante que se associa a um sonho (vv.11-12). É um eco do passado que, longe de alegrar o sujeito lírico, desperta nele a saudade de um tempo irrecuperável (vv.15-16). Os adjetivos "Dolente" e "calma" (v.2) remetem para a durabilidade do som, que não se apaga na memória do poeta.

Convém igualmente destacar, ainda na primeira estrofe, o simbolismo patente no vocábulo “aldeia” (v.1). A aldeia poderá simbolizar neste poema o espaço da infância do sujeito lírico. Surge como um espaço de intimidade, metáfora da interioridade do poeta.

Na segunda estrofe, o sujeito poético pretende mostrar o impacto que o sino, símbolo da dolorosa passagem do tempo, tem no seu estado de espírito. Começa por afirmar que as memórias de um passado saudoso assolam a sua alma tão lentamente como a tristeza da vida (vv.5-6), comparando, deste modo, a lentidão do soar do sino com o seu próprio estado de espírito nostálgico. Para além disso, à medida que o sino toca, acentua-se no sujeito poético a saudade de tempos passados e “ […] a primeira pancada/ Tem o som de repetida”, pois soa tanto no espaço exterior como também no espaço interior, na alma do poeta. Esse seu ecoar instaura no sujeito poético uma certa melancolia e tristeza. Remete, também, para a dor de pensar, pois o eu lírico não se limita a fruir o som do sino que ouve no presente, mas intelectualiza a emoção.

Na terceira estrofe, o sujeito lírico compara o toque do sino a um sonho (“És para mim como um sonho.”). Ele exerce esta comparação porque aquele toque remete-o para um passado distante, o qual nunca mais vai voltar, fazendo com que essas memórias pareçam um sonho, despertando nele a nostalgia de uma infância perdida.

Na quarta e última estrofe, o sujeito poético recorre à antítese "Sinto mais longe o passado,/ Sinto a saudade mais perto", apercebendo-se que a inconsciência e a felicidade que experimentou na sua infância não poderão ser revividas. São despertados nele sentimentos de saudade do bem perdido, do único momento de felicidade plena, do tempo onírico que é a infância. A anáfora do vocábulo “Sinto” (vv.15-16) também concorre para evidenciar a frustração e a nostalgia do sujeito poético.

Relativamente à forma, o poema é composto por quatro quadras, nas quais todos os versos apresentam sete sílabas métricas (a redondilha, maior neste caso, é um metro popular). Nesta composição poética são empregados um léxico e uma sintaxe simples. Além das características já enunciadas, este poema tem uma grande componente de musicalidade devido ao uso da aliteração (“Sinto mais longe o passado/ Sinto a saudade […] “) e do ritmo muito marcado – predominantemente alternado com o som e a pausa decorrentes das badaladas. Deste modo, é possível verificar que se encontram no mesmo reatualizadas as características da poesia tradicional, entre as quais, o predomínio da quadra, a sintaxe simples, o ritmo melodioso, o verso curto (sete sílabas métricas) e o léxico acessível.

Em conclusão, nesta composição poética de Fernando Pessoa, publicada pela primeira vez em 1914 na revista A Renascença, o sujeito poético dirige as suas palavras, sempre e unicamente, ao sino, mas sem esperar ou pedir nada dele. O sino é a causa imediata do seu falso diálogo, no qual enuncia, em tom melancólico, a sua condição de eterno errante (v.10) para quem tudo é simultaneamente perto e distante (vv.15-16), desde o passado irrecuperável até ao soar do sino no presente.





Natal... Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
Stou só e sonho saudade.

E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!



A  evocação do sujeito poético é triste e melancólica. Isto porque o Natal é o período por excelência das reuniões familiares e ele está só e sem família. A primeira estrofe do poema reúne esses mesmos sentimentos tão estranhos ao eu lírico: os "lares aconchegados" e "os sentimentos passados". Ele imagina as famílias na província, reunidas, conseguindo na sua unidade familiar continuar as tradições natalícias.


Na segunda estrofe, porém,  já não consegue esconder o que ele próprio sente perante essa visão das famílias reunidas, em tranquilidade. O coração de sujeito poético não se reconhece nesses sentimentos, ele está "oposto ao mundo", na medida que ele próprio está afastado dos outros, só e frio. Mas, mesmo assim, ele reconhece aquela verdade universal, que a "família é verdade". Trata-se afinal de uma confissão horrível que ele faz para si mesmo, pois existem vários tipos de verdade: aquela verdade solitária que ele persegue pelos seus estudos, e a verdade simples, da família, da tranquilidade natalícia.

 O poema acaba com esta consciência do impossível. Lá na província, há lares aconchegados onde tudo isto é uma realidade, em que tudo isto é "verdade". Porém, esta é uma "verdade" inacessível ao sujeito poético, pois quando se sentiu em família era feliz, mas inconsciente e, por isso,  não tem memória disso e, agora, que é consciente, essa felicidade está-lhe vedada, pois já nada lhe resta.




















Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.